domingo, 31 de agosto de 2014
Freud - Psicanálise e psiquiatria
Sigmund Freud
Conferencias introdutórias sobre
Psicanálise
Parte 3
Conferencia XVI
Psicanálise e Psiquiatria
SENHORAS E SENHORES:
Alegra-me vê-los novamente, no início do novo
ano acadêmico, para uma retomada de nossas discussões. No ano passado, falei-lhes
de como a psicanálise aborda as parapraxias e os sonhos. Este ano, gostaria de
conduzi-los à compreensão dos fenômenos da neurose, que, conforme logo
verificarão, têm muitas coisas em comum com ambos. Devo, porém, adverti-los,
antecipadamente, de que não poderei oferecer-lhes, este ano, em relação a mim,
a mesma situação do ano passado. Naquela época, fiz questão de jamais dar um
passo sem estar de acordo com o julgamento dos senhores; foram muitas as coisas
que debati com os senhores, e dei acolhida às suas objeções — de fato,
reconheci-os e ao seu ‘senso comum’ como fator decisivo. Isto, contudo, não é
mais possível, e por uma razão simples. As parapraxias e os sonhos não são
fenômenos desconhecidos dos senhores; poderíamos dizer que os senhores tinham,
ou facilmente podiam obter, tanta experiência acerca dos mesmos quanto eu.
Entretanto, a área dos fenômenos da neurose lhes é desconhecida; de vez que os
senhores não são médicos, têm qualquer acesso a eles que não seja por
intermédio daquilo que tenho a dizer-lhes; e de que serve o melhor raciocínio,
se este não está acompanhado da familiaridade com o conteúdo daquilo de que se
ajuíza?
Os senhores não devem, porém, tomar essa
advertência minha no sentido de que eu proponha dar-lhes conferências dogmáticas
e insista em seu crédito irrestrito. Um equívoco desses far-me-ia grave
injustiça. Não desejo suscitar convicção; desejo estimular o pensamento e
derrubar preconceitos. Se, em decorrência da falta de conhecimento do material,
os senhores não estão em condições de emitir um julgamento, não deveriam nem
acreditar, nem rejeitar. Deveriam ouvir atentamente e permitir que atue nos
senhores aquilo que lhes digo. Não é tão fácil adquirir convicções; ou, se
estas são alcançadas facilmente, logo se revelam sem valor e incapazes de
resistência. A única pessoa que tem o direito de possuir uma convicção é alguém
que, como eu, tenha trabalhado, por muitos anos, o mesmo material e que, assim
agindo, tenha tido, por si próprio, as mesmas e surpreendentes experiências. De
que servem então, na esfera do intelecto, essas convicções súbitas, essas
conversões-relâmpago, essas rejeições instantâneas? Não está claro que o ‘coup
de foudre‘, amor à primeira vista, deriva de esfera bem diferente, da
esfera das emoções? Nem mesmo dos nossos pacientes exigimos que devem
convencer-se da verdade da psicanálise, no tratamento, ou aderir a ela. Tal
atitude freqüentemente levanta nossas suspeitas. A atitude que neles achamos
mais desejável é a de um benévolo ceticismo. Assim, também os senhores devem
esforçar-se por deixar que os pontos de vista psicanalíticos amadureçam
tranqüilamente nos senhores, junto com a visão popular ou psiquiátrica, até
surgir a oportunidade de ambas se influenciarem reciprocamente, de uma competir
com a outra e de se aliarem no rumo de uma conclusão.
Por outro lado, não devem, de modo algum,
supor que aquilo que lhes apresento como conceito psicanalítico seja um sistema
especulativo. Pelo contrário, é empírico — seja uma expressão direta das
observações, seja um processo consistente em trabalhá-las exaustivamente. Se
esse trabalho exaustivo foi executado de uma maneira adequada e fundamentada,
isto se verá no decorrer de futuros progressos da ciência, e realmente posso
afirmar, sem jactância, após um período de quase vinte e cinco anos e tendo
atingido uma idade razoavelmente avançada, que essas observações são o
resultado de trabalho especialmente difícil, intensivo e aprofundado.
Freqüentemente tive a impressão de que nossos opositores relutavam em levar em
conta essa origem de nossas teses, como se pensassem que se tratava apenas de
noções determinadas subjetivamente, às quais qualquer um podia opor outras, de
sua própria escolha. Essa conduta dos nossos opositores não me é completamente
compreensível. Talvez se deva ao fato de que, como médico, habitualmente se tem
tão pouco contacto com pacientes neuróticos e se presta tão pouca atenção ao
que dizem esses pacientes que não se pode imaginar a possibilidade de que se
possa derivar algo de valioso de suas comunicações — isto é, a possibilidade de
efetuar acuradas observações a respeito delas. Valho-me desta oportunidade para
assegurar-lhes que, no decorrer destas conferências, permitirei muito pouca
controvérsia, especialmente com algumas pessoa, individualmente. Nunca pude
convencer-me da verdade da máxima segundo a qual a controvérsia é a mãe de
todas as coisas. Penso que deriva dos sofistas gregos e, como eles, peca por
supervalorizar a dialética. Parece-me, ao contrário, que aquilo que se conhece
como controvérsia científica é, na totalidade, muito improdutivo, além do fato
de quase sempre ser conduzido segundo motivos altamente pessoais. Até há alguns
anos, eu podia gabar-me de apenas uma vez haver-me envolvido numa disputa
científica regular — com um único pesquisador (Löwenfeld, de Munique).
Terminou por nos tornarmos amigos, e o somos até o dia de hoje. Não repeti,
porém, a experiência, por muito tempo, pois não tinha certeza de que o
resultado viesse a ser o mesmo.
Ora, os senhores concluirão, sem dúvida, que
uma rejeição como esta de todas as discussões por escrito demonstra um elevado
grau de inacessibilidade a objeções, de obstinação, ou, para usar um termo
científico, coloquial e educado, de apego às idéias próprias [Verranntheit].
Gostaria de dizer, em resposta, quem, porquanto, após trabalho tão árduo,
chegou-se a adquirir uma convicção, ao mesmo tempo adquiriu-se um certo direito
de manter esta convicção com alguma tenacidade. Também posso declarar que, no
transcorrer do meu trabalho, tenho modificado minhas opiniões em alguns pontos
importantes, tenho-as alterado e substituído por outras, novas — e, em todas
essas ocasiões, naturalmente, tornei isto público. E o resultado dessa
sinceridade? Algumas pessoas jamais tomaram conhecimento de quaisquer de minhas
autocorreções, e continuam, até hoje, a criticar-me por hipóteses que, para
mim, há muito cessaram de ter o mesmo significado. Outros me reprovam
justamente por estas modificações, e, por causa delas, consideram-me indigno de
confiança. Naturalmente! uma pessoa que, vez por outra, mudou de opinião, não
merece absolutamente nenhum crédito, pois tornou tudo tão demasiadamente
provável, que as últimas afirmações também podem ser equivocadas; mas uma
pessoa que inflexivelmente manteve o que uma vez afirmou, ou que não pode de
relance ser persuadida a abandoná-lo, deve naturalmente ser aferrada às idéias
próprias, ou teimosa! Que se pode fazer frente a essas objeções contraditórias
dos críticos, senão permanecer como se é, e conduzir-se de acordo com o
julgamento próprio? Estou resolvido a agir assim, e não me impedirei de
modificar ou retirar qualquer uma de minhas teorias sempre que a progressão da
experiência possa exigi-lo. Com referência a descobertas fundamentais,
até o momento atual, nada tenho a modificar, e espero que isto venha a
manter-se verdadeiro no futuro.
Vou apresentar-lhes, portanto, a visão
psicanalítica dos fenômenos da neurose. Para isto, parece que o melhor plano
consistiria em começarmos por estabelecer uma conexão com os fenômenos de que
já tratamos, tanto pela causa da analogia, como do contraste; e começarei
expondo uma ação sintomática [ver em [1] e [2]] que vi muitas pessoas
executarem durante minhas horas de consulta. Nós, analistas, não podemos fazer
muita coisa para conseguir que as pessoas que vêm até nós, em nosso
consultório, nos exponham, em um quarto de hora, os sofrimentos de toda uma
vida. Nosso conhecimento mais profundo nos dificulta dar o tipo de opinião
emitida por um outro médico — ‘Não há problema com o senhor’ — à qual se acrescenta
o conselho: ‘O senhor devia providenciar um tratamento hidropático brando.’ Um
de meus colegas, quando lhe perguntaram o que fazia com seus pacientes, que
vinham consultar, encolheu os ombros e respondeu: ‘Eu lhes aplico uma multa, de
tantas e tantas Kronen por uma inútil perda de tempo.’ Assim, os
senhores não se surpreenderão ao ouvir que, mesmo no caso de psicanalistas
muito ocupados, suas horas de atendimento não costumam ser muito animadas. A
porta simples, entre minha sala de espera e a sala de atendimento e a de
tratamento, mandei fazê-la dupla e revestida de feltro. Não pode haver dúvidas
a respeito do propósito desse arranjo. Ora, repetidamente acontece uma pessoa,
que estava na sala de espera e que mando entrar, deixar de fechar a porta atrás
de si e quase sempre deixar ambas as portas abertas. Tão logo percebo esse
fato, insisto com o paciente ou a paciente, num tom mais propriamente
inamistoso, para que volte e corrija a omissão — ainda que a pessoa questão
seja um cavalheiro elegantemente trajado ou uma senhora da alta sociedade. Isto
dá a impressão de rigorismo desnecessário. Às vezes, também, tenho-me colocado
em situação absurda, fazendo este pedido quando se verifica, depois, tratar-se
de uma pessoa que não pode por si mesmo tocar na maçaneta da porta, e se alivia
se alguém em sua companhia poupa-a dessa necessidade. Mas, na maioria dos
casos, tenho agido com acerto; pois todo aquele que se conduz dessa forma e
deixa aberta a porta entre a sala de espera e a sala de consulta de um médico,
é mal-educado e merece uma recepção inamistosa. Não tomem, contudo, partido
nesta questão, sem terem ouvido o restante. Pois esse descuido por parte do
paciente apenas acontece quando esteve sozinho na sala de espera e, portanto,
deixou atrás de si uma sala vazia; jamais acontece no caso de outras pessoas,
que lhe sejam estranha, terem estado esperando com ele. Nesse último caso, sabe
muito bem que é de seu interesse que sua conversa com o médico não seja ouvida
secretamente, e nunca deixa de fechar cuidadosamente as duas portas.Assim, a
omissão do paciente não é determinada pelo acaso ou por falta de propósito; e,
na realidade, ela não é destituída de importância, pois, conforme
verificaremos, elucida a atitude de recém-chegado para com o médico. O paciente
é mais um da grande multidão que tem um desejo insaciável de autoridade
mudança, que deseja ser ofuscado e intimidado. Ele pode ter perguntado pelo
telefone sobre a hora em que mais facilmente poderia conseguir uma entrevista;
havia formado para si a imagem de uma multidão de pessoas procurando ajuda,
como a multidão do lado de fora de uma das filiais de Julius Meinl. E
então entra em uma sala de espera vazia, e principalmente, mobiliada com
extrema modéstia, e fica chocado. Ele tem de fazer o médico pagar pelo respeito
supérfluo que tencionava oferecer-lhe: é assim que deixa de fechar a porta
entre a sala de espera e a sala de consulta. O que quer dizer ao médico, por
essa sua conduta, é: ‘Ah, então não há ninguém, e provavelmente não virá
ninguém enquanto eu estiver aqui.’ Ele se conduziria de forma igualmente
descortês e desrespeitosa durante a consulta, se sua arrogância não recebesse
uma dura repreensão logo no começo.A análise dessa pequena ação sintomática não
lhes diz nada que já não soubessem antes: a tese de que ela não é uma ação
casual, mas teve um motivo, um sentido e uma intenção, que se localiza num
contexto mental específico e que informa, mediante uma pequena indicação,
acerca de um processo mental mais importante. Mais que tudo, porém, essa ação
sintomática lhes revela que o processo assim indicado era inconsciente para a
consciência da pessoa que executou essa ação, de vez que nenhum dos pacientes
que deixou as duas portas abertas teria conseguido admitir, por meio dessa
omissão, que desejasse demonstrar tal desrespeito. Alguns deles provavelmente
ter-se-iam apercebido de determinada sensação de desapontamento ao penetrarem
na sala de espera vazia; mas a conexão entre esta impressão e a ação
sintomática que se seguiu, por certo permaneceu desconhecida de sua
consciência.Após essa pequena análise de uma ação sintomática, passaremos agora
à observação de uma paciente. Escolhi esta observação porque está vivida em
minha memória, e também por poder ser relatada em tempo relativamente breve. Determinada
quantidade de detalhes torna-se imprescindível num relato desta espécie.Um
jovem oficial, de regresso a casa, em período de uma breve licença, pediu-me
que tomasse em tratamento sua sogra, que, embora nas circunstâncias mais
felizes, estava amargurando sua própria vida e as vidas de seus parentes, com
uma idéia absurda. Foi assim que vim a conhecer uma senhora bem conservada,
cinqüenta e três anos, de natureza amável e simples, que me narrou sem
relutância a seguinte história. Ela morava no campo, vivia, num casamento
feliz, com seu marido, diretor de uma grande fábrica. Não tinha senão como
elogiar a afetuosa solicitude do marido. Há trinta anos se haviam casado por
amor, e, desde então, jamais tinha havido qualquer problema, discórdia ou motivo
para ciúmes. Seus dois filhos estavam bem casados; seu marido (e pai destes),
compenetrado de suas obrigações, ainda não pensava em aposentar-se. Um ano
antes, ela recebera uma carta anônima, acusando seu excelente marido de um caso
amoroso com uma jovem. E o resultado incrível — e, para ela, ininteligível —
foi que ela imediatamente acreditou na carta, e desde então sua felicidade foi
destruída. O curso dos acontecimentos, em maiores detalhes, é mais ou menos
este. Ela tinha uma empregada doméstica com quem costumava, talvez com
freqüência excessiva, ter conversas íntimas. Esta moça perseguia uma outra, com
certa hostilidade positivamente maldosa, porque esta outra havia progredido
muito mais na vida, embora não fosse de origem mais elevada. Em vez de dedicar-se
ao serviço doméstico, esta moça tinha conseguido concluir um curso comercial,
ingressado na fábrica e, em conseqüência da falta de pessoal, devido ao fato de
elementos da organização fabril serem requisitados para o serviço militar, foi
promovida a uma boa posição. Agora morava na própria fábrica, mantinha
relacionamento social com todos os senhores, e realmente tratavam-na por
‘Fräulein.’ A moça que tivera menos sucesso na vida naturalmente estava pronta
a repetir todos os tipos de maldades para com a antiga colega de escola. Certo
dia, essa senhora teve um diálogo com a empregada a respeito de um cavalheiro
que tinha estado com elas, que se sabia não estar vivendo com a esposa e estar
tendo um caso amoroso com outra mulher. Ela não sabia como foi que aconteceu,
mas de repente disse: ‘A coisa mais terrível que poderia acontecer-me era eu
saber que meu querido esposo também estivesse tendo um caso.’ No dia seguinte,
recebia uma carta anônima, pelo correio, a qual, como que por mágica, dava-lhe
justamente esta informação, escrita com letra disfarçada. Concluiu,
provavelmente com acerto, que a carta era obra de empregada maldosa, de vez que
apontava como amante do marido a jovem a quem a serviçal perseguia com seu
ódio. Embora imediatamente compreendesse a intriga e tivesse visto, em muitos
casos ocorridos no lugar onde vivia, quão pouco crédito merecem tais denúncias
covardes, o que aconteceu, todavia, foi que a carta abateu-a instantaneamente.
Ficou terrivelmente excitada, mandou chamar prontamente seu marido e acusou-o
violentamente. Seu marido não fez caso da acusação e agiu da melhor forma
possível. Chamou o médico da família (que era também o médico da fábrica), que
se esforçou por apaziguar a infeliz senhora. A conduta subseqüente de ambos foi
inteiramente sensata. A doméstica foi despedida, mas a suposta rival, não.
Desde então a paciente se havia tranqüilizado por períodos, repetidamente, a
ponto de não acreditar mais no conteúdo da carta anônima, porém nunca
completamente, nunca definitivamente. Bastava-lhe ouvir mencionarem o nome da
jovem senhora ou encontrá-la na rua, para nela desencadear um novo ataque de
desconfiança, dor e acusações.Este é, pois, o caso clínico dessa excelente
senhora. Não se requeria muita experiência psiquiátrica para compreender que,
em contraste com outros neuróticos, ela estava dando uma descrição por demais
atenuada de seu caso — que ela estava, por assim dizer, dissimulando — e que,
realmente, jamais deixara de acreditar na acusação contida na carta anônima.Que
atitude, portanto, um psiquiatra adotará em um caso de doença como este? Já
sabemos como ele se conduziria frente à ação sintomática do paciente que deixa
de fechar a porta da sala de consulta. Ele declara que se trata de evento
casual, sem interesse psicológico, com o qual não tem a maior preocupação. Este
procedimento, contudo, não pode ser mantido no caso da doença dessa mulher
ciumenta. A ação sintomática parece ser uma questão irrelevante; mas o sintoma
se impõe à nossa atenção como questão importante. Acompanha-se de intenso
sofrimento subjetivo e, como fato objetivo, ameaça a vida em comum de uma
família; constitui, pois, um assunto de inegável interesse psiquiátrico. O
psiquiatra começará por procurar caracterizar o sintoma por meio de algum
aspecto essencial. A idéia com que a mulher se atormenta não pode ser, em si,
chamada de absurda; de fato, ocorre senhores casados de certa idade terem casos
amorosos com mocinhas. Existe, porém, algo mais, a este respeito, que é absurdo
e difícil de entender. A paciente não possuía absolutamente nenhum outro motivo
para acreditar que seu marido afetuoso e leal pertencesse a essa outra classe,
aliás nada rara, de maridos, a não ser o que se afirmava na carta anônima. Ela
sabia que esse documento não tinha qualquer valor de prova, e podia dar uma
explicação satisfatória sobre a origem da mesma. Portanto, devia ser capaz de
dizer a si mesma que não tinha qualquer fundamento para seu ciúme, e ela
realmente o fez. Apesar disso, sofria tanto, contudo, como se julgasse esse ciúme
totalmente justificado. Idéias desse tipo, inacessíveis a argumentos lógicos
baseados na realidade, são, segundo o consenso geral, descritas como delírios.
A boa senhora, portanto, estava sofrendo de delírios de ciúme. Este é,
sem dúvida, o aspecto essencial deste caso mórbido.Depois de estabelecido este
primeiro ponto, nosso interesse psiquiátrico se torna até mais vívido. Se não
se pode eliminar um delírio mediante uma referência à realidade, então sem
dúvida ele não se originou da realidade. De onde mais ter-se-ia originado?
Existem delírios dos mais variados conteúdos: por que, neste nosso caso, se
trata justamente do delírio de ciúme? Em que tipo de pessoas atuam os delírios
e, especialmente, os delírios de ciúme? Gostaríamos de ouvir o que o psiquiatra
tem a dizer a este respeito; mas, neste ponto, ele nos deixa em apuros.
Considera apenas uma das nossas perguntas. Investigará a história familiar da
mulher e, talvez, nos dará sua resposta: ‘Os delírios aparecem em pessoas em
cujas famílias tenham ocorrido, repetidamente, outros distúrbios psíquicos
semelhantes.’ Em outros termos, se essa mulher desenvolveu um delírio, estava
predisposta a ele por transmissão hereditária. Sem dúvida, isso já é alguma
coisa; mas, é tudo que queremos saber? Foi isso a única coisa que contribuiu
para a causação da doença? Devemos contentar-nos com supor tratar-se de algo
sem importância, indiferente, ou de um capricho; ou que não se pode explicar se
o delírio de ciúme aparece de preferência a algum outro tipo? E deveríamos entender
a assertiva da predominância da influência hereditária também num sentido
negativo — que, não importa quais experiências a mente dessa mulher tivesse
encontrado, ela estaria destinada, mais cedo ou mais tarde, a vir a apresentar
um delírio? Os senhores desejarão saber por que razão a psiquiatria científica
não nos dará outras informações. Minha resposta aos senhores, contudo, é: ‘ele
é um trapaceiro que dá mais do que tem.’ O psiquiatra não sabe como lançar mais
luz sobre um caso como este. Ele deve contentar-se com um diagnóstico e um
prognóstico — incertos, apesar de uma grande quantidade de experiência —, e com
sua evolução futura.Pode a psicanálise, porém, ir além, em um caso destes? Sim,
ela realmente pode. Espero conseguir mostrar-lhes que, mesmo num caso assim,
tão difícil de abordar, ela pode descobrir algo que possibilite uma primeira
compreensão. E, antes de mais nada, eu atrairia a atenção dos senhores para o
detalhe notório de que a própria paciente positivamente provocou a carta
anônima, tendo, agora, dado apoio a seu delírio, ao informar à empregada
intrigante, no dia anterior, que lhe causaria a maior infelicidade se seu
marido tivesse um caso amoroso com uma jovem. Assim, primeiro ela incute na
empregada a idéia de enviar a carta anônima. O delírio, então, adquire certa
independência da carta; já estivera presente na paciente sob a forma de medo —
ou era um desejo? Acrescentemos a isto as outras pequenas indicações obtidas em
apenas duas sessões analíticas. A paciente, na realidade, conduziu-se de
maneira bastante não-cooperativa quando, após haver contado sua história,
perguntei-lhe por seus outros pensamentos, idéias e lembranças. Disse que não
lhe ocorria nada à mente, que já me havia dito tudo; e, depois de duas sessões,
a tentativa de tratamento comigo realmente teve de ser interrompida pois
declarou que já se sentia bem e estava segura de que a idéia patológica não
retornaria. Naturalmente, ela disse isto apenas devido à sua resistência e ao
receio da continuação da análise. Não obstante, durante essas duas sessões, fez
algumas observações que permitiram, e realmente exigiram, uma interpretação
especial; e essa interpretação lançou viva luz sobre a gênese de seu delírio de
ciúme. Ela própria estava intensamente apaixonada por um homem jovem, pelo
mesmo genro que a persuadira a procurar-me na qualidade de paciente. Ela mesma
nada sabia, ou, talvez, sabia muito pouco dessa paixão; no relacionamento
família que existia entre ambos, era fácil essa afeição apaixonada disfarçar-se
como afeição inocente. Depois de todas as nossas experiências em outras
situações, não nos é difícil tatear os caminhos da vida mental dessa honrada
esposa e digna mãe de cinqüenta e três anos. Estando apaixonada dessa maneira,
uma coisa assim tão monstruosa e impossível não podia tornar-se consciente;
permaneceu, porém, existindo, e, ainda que continuasse inconsciente, exercia
grande pressão. Algo havia de acontecer, um alívio tinha de ser buscado, e a
mitigação mais fácil surgiu, sem dúvida, através do mecanismo do deslocamento,
que desempenhou seu papel de modo tão regular na produção do ciúme delirante.
Se ao menos não somente ela, a senhora idosa, estivesse apaixonada por um homem
jovem, mas também seu idoso marido estivesse mantendo um caso amoroso com uma
jovem, então sua consciência se aliviaria do peso de sua infidelidade. A
fantasia da infidelidade de seu esposo agiu assim como uma compressa fria em
sua ferida ardente. O amor que ela própria obrigava não se lhe tornara
consciente; porém, seu reflexo especular, que lhe deu tal vantagem, agora se
tornou consciente como uma obsessão e um delírio. Naturalmente nenhum argumento
em contrário podia surtir qualquer efeito, pois o argumento era dirigido contra
a imagem especular, e não contra a imagem original que deu à outra sua força e
que permanecia oculta, inviolável, no inconsciente.Vamos reunir agora aquilo
que esta tentativa de psicanálise, curta e detida como foi, trouxe à luz para
uma compreensão deste caso — supondo, naturalmente, que nossas investigações tenham
sido efetuadas corretamente, o que não posso, aqui, submeter ao julgamento dos
senhores. Em primeiro lugar, o delírio deixou de ser absurdo ou ininteligível;
tinha um sentido, tinha motivos fundamentados, e ajustou-se ao contexto de uma
experiência emocional da paciente. Em segundo lugar, o delírio era necessário
como reação a um processo mental inconsciente que inferimos de outras
indicações, e foi justamente a esta conexão que deveu seu caráter delirante e
sua resistência a todo ataque lógico e realista. Esse delírio era, em si, de
certa maneira desejado, uma espécie de consolação. Em terceiro lugar, o fato de
o delírio vir a ser precisamente o delírio de ciúme, e não de outro tipo,
estava inequivocamente determinado pela experiência que está por trás da doença.
Naturalmente, os senhores se recordarão de que, no dia anterior, ela havia dito
à empregada intrigante que a coisa mais terrível que lhe podia acontecer seria
a infidelidade do marido. E os senhores não deixarão de perceber as duas
importantes analogias entre este caso e a ação sintomática que analisamos — a
explicação do seu sentido ou intenção e sua relação com algo inconsciente,
envolvido na situação.Por certo, isto não responde a todas as perguntas que
poderíamos fazer em relação a este caso. Pelo contrário, o caso suscita outros
problemas — alguns, em geral, ainda não se tornaram solúveis, e outros não
poderiam ser solucionados devido a existirem circunstâncias especiais
desfavoráveis. Por exemplo, por que essa mulher, que estava vivendo um casamento
feliz, apaixonou-se por seu genro? E por que o alívio, que teria sido possível
de outras maneiras, tomou a forma dessa imagem especular, dessa projeção de seu
estado em seu marido? Os senhores não devem pensar que é ocioso ou inútil
levantar tais questões. Já possuímos algum material à nossa disposição, que
possivelmente poderia servir para respondê-las. A senhora estava em uma idade
crítica, na qual as necessidades sexuais da mulher sofrem um aumento súbito e
indesejado; isto, por si só, poderia responder pelo evento. Ou ainda pode ter
ocorrido que seu excelente e fiel esposo há alguns anos não estivesse mais
gozando da capacidade sexual que essa mulher bem conservada requeria para sua
satisfação. A experiência nos demonstrou que são precisamente homens numa
situação assim, cuja fidelidade pode, conseqüentemente, ser tida como certa,
que se distinguem por tratarem suas esposas com ternura incomum, e por
mostrarem especial paciência para com os problemas nervosos delas. Ou ainda,
não pode deixar de ter significação o fato de o objeto de seu amor patogênico
ser justamente o jovem marido de uma de suas filhas. Um poderoso vínculo
erótico com uma filha, que remonta aos primórdios da constituição sexual da
mãe, às vezes encontra a forma de sobreviver numa transformação dessa ordem.
Com referência a isto, posso, talvez, recordar-lhes que a relação entre sogra e
genro tem sido considerada, desde as épocas mais remotas da raça humana, como
relação particularmente embaraçosa e que, entre tribos primitivas, deu origem a
regulamentações e ‘evitações’ tabu muito poderosas. A relação, amiúde, é
extravagante, pelos padrões civilizados, tanto em sentido positivo como
negativo. Qual desses três fatores tornou-se atuante, no caso em questão, ou se
dois deles, ou se, talvez, todos os três vieram juntos, verdadeiramente não
lhes posso dizer; isso, contudo, é só porque não me foi possível continuar a
análise do caso além de duas sessões.Verifico agora, senhores, que lhes venho
falando de muitas coisas, e os senhores não estão preparados para entendê-las.
Assim procedi para fazer a comparação entre psiquiatria e psicanálise. Existe,
porém, uma coisa que posso perguntar-lhes, agora. Observaram algum sinal de
contradição entre elas? A psiquiatria não emprega os métodos técnicos da
psicanálise; toca superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo
do delírio, e, ao apontar para a hereditariedade, dá-nos uma etiologia geral e
remota, em vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas. Mas
existe uma contradição, uma oposição nisso? Não é o caso de uma suplementar a
outra? O fator hereditário contradiz a importância da experiência? Ambas as
coisas não se combinam da maneira mais efetiva?
Os senhores assegurarão não existir nada na
natureza do trabalho psiquiátrico que possa opor-se à investigação
psicanalítica. O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os
psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como
a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos
órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células. Não é fácil
imaginar uma contradição entre essas duas espécies de estudo, sendo um a
continuação do outro. Atualmente, como sabem, a anatomia é considerada por nós
como fundamento da medicina científica. Houve, todavia, época em que era tão
proibido dissecar um cadáver humano, a fim de descobrir a estrutura interna do
corpo, como hoje parece ser o exercício da psicanálise, esclarecer acerca do
mecanismo interno da mente. É de se esperar que, em futuro não muito distante,
perceber-se-á que uma psiquiatria cientificamente fundamentada não será
possível sem um sólido conhecimento dos processos inconscientes profundos da
vida mental.
Talvez a psicanálise, sempre tão atacada,
tenha, porém, entre os senhores, amigos que se regozijarão se ela puder
legitimar-se num outro sentido — no aspecto terapêutico. Como sabem, nossa
terapia psiquiátrica, até o momento atual, não é capaz de influenciar os
delírios. Será possível, talvez, que a psicanálise possa fazê-lo, graças à sua
compreensão profunda do mecanismo desses sintomas? Não, senhores, não pode. Ela
é tão impotente (pelo menos por enquanto) contra esses males, quanto qualquer
outra forma de terapia. Nós podemos compreender, na verdade, o que
ocorreu na paciente; no entanto, não temos meios de fazer com que a paciente
mesma o compreenda. Os senhores ouviram como fui incapaz de prosseguir com a
análise desse delírio além de um simples começo. Estariam os senhores dispostos
a afirmar, por isso, que uma análise de tais casos deve ser rejeitada porque é
infrutífera? Penso que não. Temos o direito, ou melhor, a obrigação, de efetuar
nossa pesquisa sem considerar qualquer efeito benéfico imediato. No fim — não
sabemos dizer onde nem quando — cada pequena parcela de conhecimento se
transformará em poder, e também em poder terapêutico. Ainda que a psicanálise
se mostrasse tão ineficaz em qualquer outra forma de doença nervosa e psíquica,
como se mostra ineficaz nos delírios, estaria plenamente justificada como insubstituível
instrumento de investigação científica. É verdade que, nesse caso, não
estaríamos em condições de exercê-la. O material humano, com o qual procuramos
aprender, que vive, tem sua vontade própria e precisa ter motivos para cooperar
em nosso trabalho, se afastaria de nós. Portanto, permitam-me finalizar meus
comentários de hoje informando-lhes que existem extensos grupos de distúrbios
nervosos nos quais a transformação do nosso melhor entendimento em poder
terapêutico realmente se efetivou, e que nessas doenças, às quais é difícil o
acesso por outros meios, obtemos, sob condições favoráveis, êxitos que não são
superados por nenhum outro meio, na área da medicina interna.
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