I
O termo
narcisismo deriva da descrição clínica e foi escolhido por Paul Näcke em 1899
para denotar a atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma
pela qual o corpo de um objeto sexual é comumente tratado — que o contempla,
vale dizer, o afaga e o acaricia até obter satisfação completa através dessas
atividades. Desenvolvido até
esse grau, o narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade
da vida sexual do indivíduo, exibindo, conseqüentemente, as características que
esperamos encontrar no estudo de todas as perversões.
Observadores
psicanalíticos foram subseqüentemente surpreendidos pelo fato de que aspectos
individuais da atitude narcisista são encontrados em muitas pessoas que sofrem
de outras perturbações — por exemplo, conforme Sadger ressaltou, em
homossexuais —, e finalmente afigurou-se provável que uma localização da libido
que merecesse ser descrita como narcisismo talvez estivesse presente em muito
maior extensão, podendo mesmo reivindicar um lugar no curso regular do
desenvolvimento sexual humano. Dificuldades do trabalho psicanalítico em
neuróticos conduziram à mesma suposição, pois parecia que, neles, essa espécie
de atitude narcisista constituía um dos limites à sua susceptibilidade à
influência.
O narcisismo
nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo
da pulsão de autoconservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser
atribuído a toda criatura viva.
Um motivo
premente para nos ocuparmos com a concepção de um narcisismo primário e normal
surgiu quando se fez a tentativa de incluir o que conhecemos da demência
precoce (Kraepelin) ou da esquizofrenia (Bleuler) na hipótese da teoria da
libido.
Esse tipo de
pacientes, que eu propus fossem denominados de parafrênicos, exibem duas
características fundamentais: megalomania e desvios de seu interesse do mundo
externo — de pessoas e coisas. Em conseqüência da segunda modificação, tornam-se
inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser curados por nossos
esforços. Mas o afastamento do parafrênico do mundo externo necessita ser mais
precisamente caracterizado. Um paciente que sofre de histeria ou de neurose
obsessiva, enquanto sua doença persiste, também desiste de sua relação com a
realidade. Mas a análise demonstra que ele de modo algum corta suas relações
eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele
substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos
reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à
iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados
àqueles objetos.
Essa é a única
condição da libido a que podemos legitimamente aplicar o termo ‘introversão’ da
libido, empregado por Jung indiscriminadamente.
Com o
parafrênico a situação é diferente. Ele parece realmente ter retirado sua
libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras na
fantasia. Quando realmente as substitui, o processo parece ser
secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a
conduzir a libido de volta a objetos.
Surge a questão:
Que acontece à libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A
megalomania característica desses estados aponta o caminho. Essa megalomania,
sem dúvida, surge a expensas da libido objetal. A libido afastada do mundo
externo é dirigida para o eu e assim dá
margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo. Mas a própria
megalomania não constitui uma criação nova; pelo contrário, é, como sabemos,
ampliação e manifestação mais clara de uma condição que já existia previamente.
Isso nos leva a considerar o narcisismo que surge através da indução de
investimentos objetais como sendo secundário, superposto a um narcisismo
primário que é obscurecido por diversas influências diferentes.
Desejo ressaltar que não me proponho aqui explicar ou
penetrar ainda mais no problema da esquizofrenia, limitando-me meramente a
reunir o que já foi dito em outras ocasiões, a fim de justificar a introdução
do conceito de narcisismo.
Essa extensão da
teoria da libido — em minha opinião, legítima — recebe reforço de um terceiro
setor, a saber, de nossas observações e conceitos sobre a vida mental das
crianças e dos povos primitivos. Nos segundos, encontramos características que,
se ocorressem isoladamente, poderiam ser atribuídas à megalomania: uma
superestima do poder de seus desejos e atos mentais, a ‘onipotência de
pensamentos’, uma crença na força taumatúrgica das palavras, e uma técnica para
lidar com o mundo externo — ‘mágica’ — que parece ser uma aplicação lógica
dessas premissas grandiosas. Nas crianças de hoje, cujo desenvolvimento
é muito mais obscuro para nós, esperamos encontrar uma atitude exatamente
análoga em relação ao mundo externo.
Assim, formamos
a idéia de que há um investimento libidinal original do eu, parte do qual é
posteriormente transmitido aos objetos, mas que fundamentalmente persiste e
está relacionado com os investimentos objetais, assim como o corpo de uma ameba
está relacionado com os pseudópodes que produz.
Em nossas pesquisas, tomando, como se tomou, os sintomas neuróticos
como ponto de partida, essa parte da localização da libido permaneceu necessariamente
oculta para nós no início. Tudo que observamos foram emanações dessa libido —
os investimentos objetais, que podem ser transmitidas e retiradas novamente.
Também vemos,
em linhas gerais, uma antítese entre a libido do eu e a libido objetal. Quanto mais uma é
empregada, mais a outra se esvazia. A libido objetal atinge sua fase mais
elevada de desenvolvimento no caso de uma pessoa apaixonada, quando o indivíduo
parece desistir de sua própria personalidade em favor de um investimento
objetal, ao passo que temos a condição oposta na fantasia do paranóico (ou
autopercepção) do ‘fim do mundo’.
Finalmente, no
tocante à diferenciação das energias psíquicas, somos levados à conclusão de
que, para começar, durante o estado de narcisismo, elas existem em conjunto,
sendo nossa análise demasiadamente tosca para estabelecer uma distinção entre
elas. Somente quando há investimento objetal é que é possível discriminar uma
energia sexual — a libido — de uma energia das pulsões do eu.
Antes de
prosseguir, devo tocar em duas questões que nos levam ao âmago das dificuldades
de nosso assunto. Em primeiro lugar, qual a relação entre o narcisismo de que
tratamos e o auto-erotismo, que descrevemos como um estado inicial da libido?
Em segundo, se concedemos ao eu um
investimento primário da libido, por que há necessidade de distinguir ainda uma
libido sexual de uma energia não-sexual das pulsões do eu ? A postulação de uma
única espécie de energia psíquica não nos pouparia de todas as dificuldades que
residem em diferenciar uma energia das pulsões do eu da libido do eu, e a libido do eu da libido objetal?
No tocante à primeira questão, posso ressaltar que
estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo;
o eu tem de ser desenvolvido.
As pulsões
auto-eróticas, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto,
necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo — uma nova ação psíquica —
a fim de provocar o narcisismo.
Provocaremos uma
inquietação perceptível em qualquer analista de quem se exija uma resposta
definitiva à segunda questão. Não é agradável a idéia de abandonar a observação
pela controvérsia teórica estéril, mas nem por isso nos devemos esquivar de uma
tentativa de elucidação. É verdade que noções tais como a de uma libido do eu ,
uma energia das pulsões do eu, e assim por diante, não são particularmente
fáceis de apreender, nem suficientemente ricas de conteúdo; uma teoria
especulativa das relações em questão deveria começar por buscar como base um
conceito nitidamente definido. Mas sou da opinião de que é exatamente nisso que
consiste a diferença entre uma teoria especulativa e uma ciência erigida a
partir da interpretação empírica. Esta última não invejará a especulação por
seu privilégio de ter um fundamento suave, logicamente inatacável,
contentando-se, de bom grado, com conceitos básicos nebulosos mal imagináveis,
que espera apreender mais claramente no decorrer de seu desenvolvimento, ou que
está até mesmo preparada para substituir por outros, pois essas idéias não são
o fundamento da ciência, no qual tudo repousa: esse fundamento é tão- somente a
observação. Não são a base, mas o topo de toda a estrutura, e podem ser
substituídas e eliminadas sem prejudicá-la. Em nossos dias, a mesma coisa vem
acontecendo na ciência da física, cujas noções básicas no tocante a matéria,
centros de força, atração etc. são quase tão discutíveis quanto as noções
correspondentes em psicanálise.
O valor dos
conceitos ‘libido do eu ’ e ‘libido do objeto’ reside no fato de que se
originam do estudo das características íntimas dos processos neuróticos e
psicóticos. A diferenciação
da libido numa espécie que é adequada ao eu
e numa outra que está ligada a objetos é o corolário inevitável de uma
hipótese original que estabelecia distinção entre as pulsões sexuais e as
pulsões do eu. Seja como for, a análise das neuroses de pura transferência
(neurose de histeria e obsessiva) compeliu-me a fazer essa distinção, e sei
apenas que todas as tentativas para explicar esses fenômenos por outros meios
foram inteiramente infrutíferas.
Na ausência total
de qualquer teoria das pulsões que nos ajude a encontrar nossa orientação,
podemos permitir-nos, ou antes, cabe-nos começar por elaborar alguma hipótese
para a sua conclusão lógica, até que ela ou se desintegre ou seja confirmada.
Existem vários pontos a favor da hipótese de ter havido desde o início uma
separação entre os as pulsões sexuais e as outras pulsões do eu, além da
utilidade de tal hipótese na análise das neuroses de transferência. Admito que
somente essa segunda consideração não seria destituída de ambigüidade,
porquanto poderia tratar-se de uma energia psíquica indiferente que só se torna
libido através do ato de investimento de um objeto. Mas, em primeiro lugar,
a distinção feita nesse conceito corresponde à distinção popular comum entre a
fome e o amor. Em segundo lugar, há considerações biológicas a seu favor. O
indivíduo leva realmente uma existência dúplice: uma para servir as suas
próprias finalidades e a outra como um elo numa corrente, que ele serve contra
sua vontade ou pelo menos involuntariamente. O indivíduo considera a
sexualidade como um dos seus próprios fins, ao passo que, de outro ponto de
vista, ele é um apêndice de seu germoplasma, a cuja disposição põe suas
energias em troca de uma retribuição de prazer. Ele é o veículo mortal de
uma substância (possivelmente) imortal — como o herdeiro de uma propriedade
inalienável, que é o único dono temporário de um patrimônio que lhe sobrevive.
A separação das pulsões sexuais das pulsões do eu simplesmente refletiria essa
função dúplice do indivíduo. Em terceiro lugar, devemos recordar que
todas as nossas idéias provisórias em psicologia presumivelmente algum dia se
basearão numa subestrutura orgânica. Isso torna provável que as substâncias
especiais e os processos químicos sejam os responsáveis pela realização das
operações da sexualidade, garantindo a extensão da vida individual na da espécie.
Estamos levando essa probabilidade em conta ao substituirmos as substâncias químicas
especiais por forças psíquicas especiais.
Tento em geral
manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja diferente em natureza,
inclusive das linhas biológicas de pensamento. Por essa mesma razão, gostaria,
nessa altura, de admitir expressamente que a hipótese de pulsões do eu e
pulsões sexuais separados (isto é, a teoria da libido) está longe de repousar,
inteiramente, numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia.
Mas serei suficientemente coerente [com minha norma geral] para abandonar essa
hipótese, se o próprio trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra
hipótese mais útil sobre as pulsões. Até agora, isso não aconteceu. Pode
ocorrer que, com mais fundamento e numa visão de maior alcance, a energia
sexual — a libido — seja apenas o produto de uma diferenciação na energia que
atua generalizadamente na mente. Mas tal assertiva não tem qualquer relevância.
Relaciona-se com assuntos que se acham tão afastados dos problemas de nossa
observação, e a respeito dos quais conhecemos tão pouco, que é igualmente
ocioso contestá-la ou afirmá-la; essa identidade primordial talvez tenha tão
pouco que ver com nossos interesses analíticos quanto o parentesco primordial
de todas as raças da humanidade tem que ver com a prova de parentesco exigida a
fim de se estabelecer um direito legal de herança. Todas essas especulações não
nos levam a parte alguma. Visto não podermos esperar que outra ciência nos
apresente as conclusões finais sobre a teoria das pulsões, é muito mais
objetivo tentar ver que luz pode ser lançada sobre esse problema básico da
biologia por uma síntese dos fenômenos psicológicos. Enfrentemos a
possibilidade de erro, mas não nos deixemos dissuadir de buscar as implicações
lógicas da hipótese, que em primeiro lugar adotamos, de uma antítese
entre as pulsões do eu e as pulsões
sexuais (hipótese à qual fomos forçosamente conduzidos pela análise das
neuroses de transferência), e de verificar se ela se mostra destituída de
contradições e se é profícua, e se pode ser aplicada também a outras
perturbações, como a esquizofrenia.
Seria,
naturalmente, uma questão diferente se se provasse que a teoria da libido já
fracassou na tentativa de explicar essa segunda doença. Isso foi asseverado por
C. G. Jung (1912) e é por causa disso que me vi obrigado a entrar nessa última
discussão, da qual gostaria de ter sido poupado. Teria preferido seguir até o
fim o caminho trilhado na análise do caso Schreber sem qualquer discussão de
suas premissas. Mas a asserção de Jung é, para dizer o mínimo, prematura. Os
fundamentos que apresenta para ela são deficientes. Em primeiro lugar, recorre
a uma confissão, que eu teria feito, de que fora obrigado, devido às
dificuldades da análise de Schreber, a estender o conceito de libido (isto é, a
desistir de seu conteúdo sexual) e a identificar a libido com o interesse
psíquico em geral. Ferenczi (1913b), numa crítica exaustiva à obra de Jung, já
disse tudo o que é necessário a título de correção dessa interpretação errônea.
Posso apenas corroborar sua crítica e repetir que jamais fiz tal retratação no
tocante à teoria da libido. Outro argumento de Jung, a saber, que não podemos
supor que a retirada da libido seja em si mesma suficiente para acarretar a
perda da função normal da realidade, não é um argumento, mas um ditame. ‘Incorre
em petição de princípio’ e poupa discussão, pois se e como isso é possível
era precisamente o ponto que devia estar sob investigação. Em sua grande obra
seguinte, Jung (1913 [339-40]) simplesmente falha na solução que eu havia
indicado: ‘Ao mesmo tempo’, escreve, ‘ainda há o seguinte a ser levado em
consideração (um ponto ao qual, incidentalmente, Freud se refere em sua obra
sobre o caso Schreber [1911c]) — que a introversão da libido sexualis
conduz a um investimento do “eu ”, e que possivelmente é isso que produz o
resultado de uma perda da realidade. É realmente uma possibilidade tentadora
explicar a psicologia da perda da realidade dessa maneira’. Mas Jung não vai
muito além no exame dessa possibilidade. Algumas linhas adiante ele a
põe de lado com a observação de que essa determinante ‘resultaria na psicologia
de um anacoreta ascético, não em demência precoce’. Quão pouco essa analogia
inadequada pode ajudar-nos a resolver a questão fica claro pela consideração de
que um anacoreta dessa espécie, que ‘tenta erradicar todos os traços de
interesse sexual’ (mas só no sentido popular da palavra ‘sexual’), nem sequer
necessariamente exibe qualquer localização patogênica da libido. Ele pode ter
desviado inteiramente seu interesse sexual dos seres humanos; contudo, pode
tê-lo sublimado num interesse elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino
animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou
retorno a seu eu . Essa analogia pareceria excluir por antecipação a possibilidade
de se estabelecer uma diferenciação entre o interesse que emana de fontes
eróticas e os outros. Recordemos, além disso, que as pesquisas da escola suíça,
por mais valiosas que sejam, elucidaram apenas duas facetas do quadro da
demência precoce — a presença nele de complexos que conhecemos tanto em
indivíduos saudáveis como em neuróticos e a similaridade das fantasias que nele
ocorrem com mitos populares —, mas não puderam lançar mais luz alguma sobre o
mecanismo da doença. Podemos, então, repudiar a asserção de Jung, segundo a
qual a teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a demência
precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras neuroses.
II
Parece-me que
certas dificuldades especiais perturbam o estudo direto do narcisismo. Nosso
principal meio de acesso a ele continuará a ser provavelmente a análise das
parafrenias. Assim como as neuroses de transferência nos permitiram traçar os
impulsos instintuais libidinais, também a demência precoce e a paranóia nos fornecerão
uma compreensão interna (insight) da psicologia do eu . Mais uma vez, a
fim de chegar à compreensão do que parece tão simples em fenômenos normais,
teremos de recorrer ao campo da patologia com suas distorções e exageros. Ao
mesmo tempo, outros meios de abordagem nos permanecem acessíveis, e através
deles podemos obter um conhecimento melhor do narcisismo. Passarei a
examiná-los agora, na seguinte ordem: o estudo da doença orgânica, da
hipocondria e da vida erótica dos sexos.
Ao avaliar a
influência da doença orgânica sobre a distribuição da libido, sigo uma sugestão
que me foi feita verbalmente por Sándor Ferenczi. É do conhecimento de todos, e
eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar
orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que
não dizem respeito a seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que
ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos:
enquanto sofre, deixa de amar. A banalidade desse fato não justifica que
deixemos de traduzi-lo nos termos da teoria da libido. Devemos então dizer:
o homem enfermo retira seus investimentos libidinais de volta para seu próprio
eu , e os põe para fora novamente quando se recupera. ‘Concentrada está a sua
alma’, diz Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dentes, ‘no
estreito orifício do molar’.
Aqui a libido e o interesse do eu partilham do mesmo destino e são mais uma vez
indistiguíveis entre si. O egoísmo familiar do enfermo abrange os dois. Achamos
isso tão natural porque estamos certos de que, na mesma situação, nosso
comportamento seria idêntico. A maneira pela qual os sentimentos de quem ama,
por mais fortes que sejam, são banidos pelos males corpóreos, e de súbito
substituídos por uma indiferença completa, constitui um tema que tem sido
consideravelmente explorado por escritores humorísticos.
A condição do
sono também se assemelha à doença, por acarretar uma retirada narcisista das
posições da libido até o próprio eu do indivíduo, ou, mais precisamente, até o
desejo único de dormir. O
egoísmo dos sonhos ajusta-se muito bem nesse contexto. [ver em [1]]. Em ambos
os estados temos, pelo menos, exemplos de alterações na distribuição da libido
que são resultantes de uma modificação no eu.
A hipocondria, da
mesma forma que a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas
aflitivas e penosas, tendo sobre a distribuição da libido o mesmo efeito que a
doença orgânica. O hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido — a
segunda de forma especialmente acentuada — dos objetos do mundo externo,
concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção. Torna-se agora
evidente uma diferença entre a hipocondria e a doença orgânica: na segunda, as
sensações aflitivas baseiam-se em mudanças demonstráveis [orgânicas]; na
primeira, isso não ocorre. Mas estaria inteiramente de acordo com nossa
concepção geral dos processos de neurose, se resolvêssemos dizer que a
hipocondria deve estar certa: deve-se supor que as modificações orgânicas
também estão presentes nela.
Mas o que seriam
essas mudanças? Deixar-nos-emos guiar, nessa altura, por nossa experiência, a
qual mostra que as sensações corpóreas de natureza desagradável, comparáveis às
da hipocondria, ocorrem também nas outras neuroses. Já tive ocasião de dizer
que me inclino a classificar a hipocondria, juntamente com a neurastenia e a
neurose de angústia, como uma terceira neurose ‘real’ (atual). Provavelmente
não seria ir muito longe supor que, no caso das outras neuroses, uma pequena
dose de hipocondria também se forma regularmente ao mesmo tempo. Temos o melhor
exemplo disso, creio eu, na neurose de angústia com sua superestrutura de
histeria. Ora, o protótipo familiar de um órgão que é dolorosamente delicado,
que de alguma forma é alterado e que, contudo, não está doente no sentido comum
do termo, é o órgão genital em seus estados de excitação. Nessa condição, ele
fica congestionado de sangue, intumescido e umectado, sendo a sede de uma
multiplicidade de sensações. Descrevamos agora, tomando qualquer parte do
corpo, sua atividade de enviar estímulos sexualmente excitantes à mente, como
sendo sua ‘erogenicidade’, e reflitamos, ainda, que as considerações nas quais
se baseou nossa teoria da sexualidade de há muito nos habituou à idéia de que
certas outras partes do corpo — as zonas ‘erógenas’ — podem atuar como
substitutos dos órgãos genitais e se comportarem analogamente a eles.
Temos então apenas mais um passo a dar. Podemos decidir considerar a
erogenicidade como uma característica geral de todos os órgãos e, então,
podemos falar de um aumento ou diminuição dela numa parte específica do corpo.
Para cada uma das modificações na erogenicidade dos órgãos poderia, então,
verificar-se uma modificação paralela do investimento libidinal no eu . Tais
fatores constituíram aquilo que acreditamos estar subjacente à hipocondria e
aquilo que pode exercer o mesmo efeito sobre a distribuição da libido tal como
produzida por uma doença material dos órgãos.
Vemos que, se
acompanharmos essa linha de raciocínio, nos defrontaremos não só com o problema
da hipocondria, mas também com o das outras neuroses ‘reais’ — a neurastenia e
a neurose de angústia. Paremos, portanto, nesse ponto. Não pertence ao âmbito
de uma indagação puramente psicológica penetrar tanto nas fronteiras da pesquisa
fisiológica. Mencionarei simplesmente que, a partir desse ponto de vista,
podemos suspeitar que a relação da hipocondria com a parafrenia é semelhante à
das outras neuroses ‘reais’ com a histeria e a neurose obsessiva: podemos
desconfiar, vale dizer, que ela está na dependência da libido do eu , assim
como as outras estão na da libido objetal, e que a ansiedade hipocondríaca é a
contrapartida, enquanto provém da libido do eu , da ansiedade neurótica. Além
disso, visto já estarmos familiarizados com a idéia de que o mecanismo do
adoecer e da formação de sintomas nas neuroses de transferência — o caminho da
introversão para a regressão — deve ficar vinculado a um represamento da libido
objetal, podemos também ficar mais perto da idéia de um represamento da libido
do eu , e podemos estabelecer uma relação dessa idéia com os fenômenos da
hipocondria e da parafrenia.
Nesse ponto, nossa
curiosidade naturalmente perguntará por que esse represamento da libido no
eu teria de ser experimentado como
desagradável. Contentar-me-ei com a reposta de que o desprazer é sempre a
expressão de um grau mais elevado de tensão, e que, portanto, o que ocorre é
que uma quantidade no campo dos acontecimentos materiais é transformada, aqui
como em outros lugares, na qualidade psíquica do desprazer. Não obstante,
talvez o fator decisivo para a geração do desprazer não seja a magnitude
absoluta do acontecimento material, mas antes alguma função específica dessa
magnitude absoluta. Aqui podemos até mesmo aventurar-nos a abordar a questão
de saber o que torna absolutamente necessário para a nossa vida mental
ultrapassar os limites do narcisismo e ligar a libido a objetos. A
resposta decorrente de nossa linha de raciocínio mais uma vez seria a de que
essa necessidade surge quando o investimento do eu com a libido excede certa quantidade. Um
egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso,
devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair
doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar. Isso
acompanha mais ou menos os versos do quadro que Heine traça sobre a psicogênese
da Criação:
Krankheit ist
wohl der letzte GrundDes ganzen Schöpferdrangs gewesen;Erschaffend konnte ich
genesen,Erschaffend wurde ich gesund. (Enfermo estava; e esse foi da criação o motivo: criando convalesci,
e nesse esforço sarei.)
Reconhecemos
nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a
dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou
teriam efeitos patogênicos.
Sua elaboração na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações
que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga
é, no momento, indesejável. No primeiro caso, contudo, é indiferente que esse
processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários. A
diferença não surge senão depois — caso a transferência da libido para objetos
irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento. Nos parafrênicos, a
megalomania permite uma semelhante elaboração interna da libido que voltou ao
eu ; talvez apenas quando a megalomania falhe, o represamento da libido no
eu se torne patogênico e inicie o
processo de recuperação que nos dá a impressão de ser uma doença.
Tentarei aqui
penetrar um pouco mais no mecanismo da parafrenia e reunirei os conceitos que
já me pareçam merecedores de consideração. A diferença entre as afecções
parafrênicas e as neuroses de transferência parecem-me estar na circunstância
de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a
objetos na fantasia, mas se retira para o eu . A megalomania
corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico dessa última quantidade de
libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é
encontrada nas neuroses de transferência; uma falha dessa função psíquica dá
margem à hipocondria da parafrenia, e isso é homólogo à ansiedade das neuroses
de transferência. Sabemos que essa ansiedade pode ser transformada por uma
elaboração psíquica ulterior, isto é, por conversão, formação de reação ou
construção de proteções (fobias). O processo correspondente nos parafrênicos
consiste numa tentativa de restauração, à qual se devem as surpreendentes
manifestações da doença. De uma vez que a parafrenia com freqüência, se não
geralmente, acarreta apenas um desligamento parcial da libido dos
objetos, podemos distinguir três grupos de fenômenos no quadro clínico: (1) os
que representam o que resta de um estado normal de neurose (fenômenos residuais);
(2) os que representam o processo mórbido (afastamento da libido dos seus
objetos e, além disso, megalomania, hipocondria, perturbações afetivas e todo
tipo de regressão); (3) os que representam a restauração, nos quais a libido é
mais uma vez ligada a objetos, como uma histeria (na demência precoce ou na
parafrenia propriamente dita), ou como numa neurose obsessiva (na paranóia). Esse
novo investimento libidinal difere do primário por partir de outro nível e sob
outras condições. A diferença entre as neuroses de transferência que
ocorrem no caso de nova espécie de investimento libidinal e as formações
correspondentes onde o eu é normal devem
ser capazes de nos proporcionar a compreensão interna (insight) mais
profunda da estrutura de nosso aparelho mental.
Uma terceira
maneira pela qual podemos abordar o estudo do narcisismo é através da
observação da vida erótica dos seres humanos, com suas várias espécies de
diferenciação no homem e na mulher. Assim como a libido objetal inicialmente
ocultava de nossa observação a libido do eu , também em relação à escolha de
objeto nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que
primeiro notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas
experiências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais auto-eróticas
são experimentadas em relação com funções vitais que servem à finalidade de
autopreservação. As pulsões sexuais estão, de início, ligados à satisfação das
pulsões do eu; somente depois é que eles se tornam independentes destes, e mesmo
então encontramos uma indicação dessa vinculação original no fato de que os
primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com
sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro caso, sua mãe ou quem
quer que a substitua. Lado a lado, contudo, com esse tipo e fonte de escolha
objetal, que pode ser denominado o tipo ‘anaclítico’, ou de ‘ligação’, a
pesquisa da psicanálise revelou um segundo tipo, que não estávamos preparados
para encontrar. Descobrimos, de modo especialmente claro, em pessoas cujo
desenvolvimento libidinal sofreu alguma perturbação, tais como pervertidos e
homossexuais, que em sua escolha ulterior dos objetos amorosos elas adotaram
como modelo não sua mãe mas seus próprios eus. Procuram inequivocamente a si
mesmas como um objeto amoroso, e exibem um tipo de escolha objetal que deve ser
denominado ‘narcisista’. Nessa observação, temos o mais forte dos motivos que
nos levaram a adotar a hipótese do narcisismo.
Não concluímos,
contudo, que os seres humanos se acham divididos em dois grupos acentuadamente
diferenciados, conforme sua escolha objetal se coadune com o tipo anaclítico ou
o narcisista; pelo contrário, presumimos que ambos os tipos de escolha objetal
estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou
por outro. Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais
— ele próprio e a mulher que cuida dele — e ao fazê-lo estamos postulando a
existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode
manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal.
Uma comparação
entre os sexos masculino e feminino indica então que existem diferenças
fundamentais entre eles no tocante a seu tipo de escolha objetal, embora essas
diferenças naturalmente não sejam universais. O amor objetal completo do
tipo de ligação é, propriamente falando, característico do indivíduo do sexo
masculino. Ele exibe a acentuada supervalorização sexual que se origina,
sem dúvida, do narcisismo original da criança, correspondendo assim a uma
transferência desse narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização
sexual é a origem do estado peculiar de uma pessoa apaixonada, um estado que
sugere uma compulsão neurótica, cuja origem pode, portanto, ser encontrada num
empobrecimento do eu em relação à libido
em favor do objeto amoroso. Já com o tipo feminino mais freqüentemente
encontrado, provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre.
Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até então
em estado de latência, parece ocasionar a intensificação do narcisismo
original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira
escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres,
especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento
que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha
objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com
uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se
acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa
condição cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a
vida erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais
mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos
estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação
de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o
narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram
a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O
encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu
autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos
animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes
animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas,
conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência
narcisista com que conseguem afastar do eu
qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um
bem-aventurado estado de espírito — uma posição libidinal inatacável que nós
próprios já abandonamos. O grande encanto das mulheres narcisistas tem,
contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas
dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática
da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de
objeto.
Talvez não seja
fora de propósito apresentar aqui a certeza de que essa descrição da forma
feminina de vida erótica não se deve a qualquer desejo tendencioso de minha
parte no sentido de depreciar as mulheres. Afora o fato de essa tendenciosidade
ser inteiramente estranha a mim, sei que essas diferentes linhas de
desenvolvimento correspondem à diferenciação de funções num todo biológico
altamente complicado; além disso, estou pronto a admitir que existe um número
bem grande de mulheres que amam de acordo com os moldes do tipo masculino e que
também desenvolvem a supervalorização sexual própria àquele tipo.
Mesmo para as
mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens permanece fria, há um
caminho que eleva ao amor objetal completo. Na criança que geram, uma parte de
seu próprio corpo as confronta como um objeto estranho, ao qual, partindo de
seu próprio narcisismo, podem então dar um amor objetal completo. Existem ainda
outras mulheres que não têm de esperar por um filho a fim de darem um passo no
desenvolvimento do narcisismo (secundário) para o amor objetal. Antes da
puberdade, sentem-se masculinas e se desenvolvem de alguma forma ao longo de
linhas masculinas; depois de essa tendência ter sido interrompida de repente ao
alcançarem a maturidade feminina, ainda retêm a capacidade de anseio por um
ideal masculino — ideal que é de fato uma sobrevivência da natureza de menino
que outrora possuíram.
O que eu disse até
agora à guisa de indicação pode ser concluído por um breve sumário dos caminhos
que levam à escolha de um objeto.
Uma pessoa pode
amar:
(1)Em
conformidade com o tipo narcisista:
(a) o que ela
própria é (isto é, ela mesma),
(b) o que ela
própria foi,
(c) o que ela
própria gostaria de ser,
(d) alguém que
foi uma vez parte dela mesma.
(2)Em
conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):
(a) a mulher
que a alimenta,
(b) o homem que
a protege,
e a sucessão de
substitutos que tomam o seu lugar. A inclusão do caso (c) do primeiro tipo não
pode ser justificada até uma etapa posterior deste exame. [ver em [1]]
A significância da
escolha objetal narcisista para a homossexualidade nos homens deve ser
considerada em relação a outra coisa.
O narcisismo
primário das crianças por nós pressuposto e que forma um dos postulados de
nossas teorias da libido é menos fácil de apreender pela observação direta do
que de confirmar por alguma outra inferência. Se prestarmos atenção à
atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma
revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito
abandonaram. O indicador digno de confiança constituído pela supervalorização,
que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal,
domina, como todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim eles se acham sob
a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho — o que uma observação
sóbria não permitiria — e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele.
(Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada a
isso.) Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o
funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi
forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios
de há muito por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos
que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram
como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à
sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão
ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da
criação — ‘Sua Majestade o Bebê’, como outrora nós mesmos nos
imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram — o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e
a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe. No ponto mais
sensível do sistema narcisista, a imortalidade do eu , tão oprimida pela
realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos
pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos
pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela
sua natureza anterior.
III
Os distúrbios aos
quais o narcisismo original de uma criança se acha exposto, as reações com que
ela procura proteger-se deles e os caminhos aos quais fica sujeita ao fazê-lo —
tais são os temas que proponho deixar de lado, como importante campo de
trabalho ainda por explorar. Sua parte mais importante, contudo, pode ser
isolada sob a forma do ‘complexo de castração’ (nos meninos, a ansiedade em
relação ao pênis; nas meninas, a inveja do pênis) e tratada em conexão com
o efeito da coerção inicial da atividade sexual. A pesquisa psicanalítica em
geral nos permite reconstituir as vicissitudes sofridas pelas pulsões
libidinais quando estes, isolados das pulsões do eu, ficam em oposição a eles;
mas no campo específico do complexo de castração, ela nos permite inferir a
existência de uma época e de uma situação psíquica nas quais os dois grupos de
pulsões, ainda atuando em uníssono e inseparavelmente mesclados, surgem como
interesses narcisistas. Foi desse contexto que Adler [1910] extraiu seu
conceito de ‘protesto masculino’, quase elevando-o à posição de única força
motora na formação tanto do caráter quanto da neurose, e baseando-o não numa
tendência narcisista, e portanto ainda libidinal, mas numa valorização social.
A pesquisa psicanalítica reconheceu, desde o início, a existência e a
importância do ‘protesto masculino’ mas o tem considerado, contrariamente a
Adler, como sendo narcisista em sua natureza e oriundo do complexo de
castração. O ‘protesto masculino’ está relacionado à formação do caráter,
em cuja gênese penetra juntamente com muitos outros fatores, sendo, contudo,
inteiramente inadequado para explicar os problemas das neuroses, no tocante às
quais Adler nada leva em conta, a não ser a maneira pela qual elas servem aos
pulsões s do eu . Acho inteiramente impossível situar a gênese da neurose na
estreita base do complexo de castração, por mais poderosamente que, nos homens,
esse complexo ocupe o primeiro plano entre suas resistências à cura de uma
neurose. Incidentalmente, conheço casos de neuroses em que o ‘protesto
masculino’ ou, como o encaramos, o complexo de castração, não desempenha qualquer
papel patogênico, nem sequer chegando a aparecer.
A observação de
adultos normais revela que sua megalomania antiga foi arrefecida e que as
características psíquicas a partir das quais inferimos seu narcisismo infantil
foram apagadas. Que aconteceu à libido do eu ? Devemos supor que toda ela se
converteu em investimento objetal? Essa possibilidade é claramente contrária ao
encaminhamento de nossa argumentação; podemos, porém, encontrar uma sugestão em
outra resposta para a pergunta na psicologia do recalque.
Sabemos que os
impulsos instintuais libidinais sofrem a vicissitude do recalque patogênico se
entram em conflito com as idéias culturais e éticas do indivíduo. Com isso,
nunca queremos dizer que o indivíduo em questão dispõe de um conhecimento
meramente intelectual da existência de tais idéias; sempre queremos dizer que
ele as reconhece como um padrão para si próprio, submetendo-se às exigências
que elas lhe fazem. A recalque, como dissemos, provém do eu ; poderíamos dizer
com maior exatidão que provém do amor-próprio do eu . As mesmas impressões,
experiências, impulsos e desejos aos quais um homem se entrega, ou que pelo
menos elabora conscientemente, serão rejeitados com a maior indignação por
outro, ou mesmo abafados antes que entrem na consciência. A diferença
entre os dois, que encerra o fator condicionante do recalque, pode ser
facilmente expressa em termos que permitem seja ela explicada pela teoria da
libido. Podemos dizer que o primeiro homem fixou um ideal em si mesmo, pelo
qual mede seu eu real, ao passo que o
outro não formou qualquer ideal desse tipo. Para o eu , a formação de
um ideal seria o fator condicionante do recalque.
Esse eu ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (self-love)
desfrutado na infância pelo eu real. O
narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo eu ideal, o qual, como o eu infantil, se acha possuído de toda perfeição
de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o
homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora
desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua
infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de
terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não
mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um
eu ideal. O que ele projeta diante de si
como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na
qual ele era o seu próprio ideal.
Somos naturalmente
levados a examinar a relação entre essa formação de um ideal e a sublimação. A
sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal e consiste no fato
da pulsão se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da
finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da
sexualidade. A idealização é um processo que diz respeito ao objeto; por
ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e
exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido
do eu quanto na da libido objetal. Por
exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo. Na
medida em que a sublimação descreve algo que tem que ver com a pulsão, e a
idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois conceitos devem ser
distinguidos um do outro.
A formação de um
ideal do eu é muitas vezes confundida
com a sublimação da pulsão, em detrimento de nossa compreensão dos fatos. Um
homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do eu , nem
por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar suas pulsões libidinais.
É verdade que o ideal do eu exige tal
sublimação, mas não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo
especial que pode ser estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente
independente de tal estímulo. É precisamente nos neuróticos que encontramos as
mais acentuadas diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seu ideal do
eu e a dose de sublimação de suas pulsões
libidinais primitivas; e em geral é muito mais difícil convencer um idealista a
respeito da localização inconveniente de sua libido do que um homem simples,
cujas pretensões permaneceram mais moderadas. Além disso, a formação de um
ideal do eu e a sublimação se acham
relacionadas, de forma bem diferente, à causação da neurose. Como vimos, a
formação de um ideal aumenta as exigências do eu , constituindo o fator mais
poderoso a favor do recalque; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual
essas exigências podem ser atendidas sem envolver recalque.
Não nos
surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial que realizasse a
tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do eu , e que,
com essa finalidade em vista, observasse constantemente o eu real, medindo-o por aquele ideal.
Admitindo-se que esse agente de fato exista, de forma alguma seria possível
chegar a ele como se fosse uma descoberta — podemos tão-somente reconhecê-lo,
pois podemos supor que aquilo que chamamos de nossa ‘consciência’ possui as características
exigidas. O reconhecimento desse agente nos permite compreender os chamados
‘delírios de sermos notados’ ou, mais corretamente, de sermos vigiados,
que constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranóides, podendo também
ocorrer como uma forma isolada de doença, ou intercalados numa neurose de
transferência. Pacientes desse tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos
são conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas; eles são informados
sobre o funcionamento desse agente por vozes que caracteristicamente lhes falam
na terceira pessoa (‘Agora ela está pensando nisso de novo’, ‘Agora ele está
saindo’). Essa queixa é justificada; ela descreve a verdade. Um poder dessa
espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas intenções,
existe realmente. Na realidade, existe em cada um de nós em nossa vida normal.
Os delírios de
estar sendo vigiado apresentam esse poder numa forma regressiva, revelando
assim sua gênese e a razão por que o paciente fica revoltado contra ele, pois o
que induziu o indivíduo a formar um ideal do eu , em nome do qual sua
consciência atua como vigia, surgiu da influência crítica de seus pais
(transmitida a ele por intermédio da voz), aos quais vieram juntar-se, à medida
que o tempo passou, aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e
indefinível coorte de todas as outras pessoas de seu ambiente — seus
semelhantes — e a opinião pública.
Dessa forma,
grandes quantidades de libido de natureza essencialmente homossexual são
introduzidas na formação do ideal do eu
narcisista, encontrando assim um escoadouro e satisfação em conservá-lo.
A instituição da consciência foi, no fundo, uma personificação, primeiro da
crítica dos pais, e, subseqüentemente, da sociedade — processo que se repete
quando uma tendência ao recalque se desenvolve de uma proibição ou obstáculo
que proveio, no primeiro caso, de fora. As vozes, bem como a multidão
indefinida, são reconduzidas ao primeiro plano pela doença, e assim a evolução
da consciência se reproduz de forma regressiva. Mas a revolta contra esse
‘agente de censura’ brota não só do desejo, por parte do indivíduo (de acordo
com o caráter fundamental de sua doença), de libertar-se de todas essas
influências, a começar pela dos pais, mas também do fato de retirar sua libido
homossexual delas. A consciência do paciente então se confronta com ele de maneira regressiva, como sendo
uma influência hostil vinda de fora.
As queixas feitas
pelos paranóicos também revelam que, no fundo, a autocrítica da consciência
coincide com a auto-observação na qual ela se baseia. Assim, a atividade da
mente que assumiu a função da consciência também se coloca a serviço da
pesquisa interna, que proporciona à filosofia o material para as suas operações
intelectuais. Isso pode ter certa relação com a tendência, característica dos
paranóicos, de formar sistemas especulativos.
Por certo será de
grande importância para nós encontrar provas da atividade desse agente
criticamente observador — que se torna elevada na consciência e na introspecção
filosófica — também em outros campos. Mencionarei aqui o que Herbert Silberer
denominou de ‘fenômeno funcional’, um dos poucos acréscimos indiscutivelmente
valiosos à teoria dos sonhos. Silberer, como sabemos, demonstrou que em estados
entre o sono e a vigília podemos observar diretamente a tradução dos
pensamentos em imagens visuais, mas que, nessas circunstâncias, com freqüência
temos a representação, não de um conteúdo do pensamento, mas do estado real
(disposição, fadiga etc.) da pessoa que luta contra o sono. De forma
semelhante, revelou que as conclusões de alguns sonhos ou de algumas divisões
de seu conteúdo significam meramente a própria percepção, por parte daquele que
sonha, do seu estado de sono ou de vigília. Silberer demonstrou assim o papel
desempenhado pela observação — no sentido dos delírios do paranóico quanto a
estar sendo vigiado — na formação dos sonhos. Esse papel não é constante.
Provavelmente, desprezei-o por não desempenhar um papel relevante em meus
próprios sonhos; nas pessoas filosoficamente dotadas e habituadas à
introspecção ele pode tornar-se bastante evidente.
Lembremo-nos aqui
de já termos verificado que a formação de sonhos ocorre sob o domínio de uma
censura que força a distorção dos pensamentos oníricos. Não figuramos, contudo,
essa censura como tendo um poder especial, mas escolhemos o termo para designar
uma faceta das tendências repressivas que regem o eu , a saber, a faceta que
está voltada para os pensamentos oníricos. Se penetrarmos ainda mais na
estrutura do eu , também poderemos reconhecer, no ideal do eu e nas expressões orais dinâmicas da
consciência, o censor dos sonhos. Se esse censor
estiver, até certo ponto, alerta, mesmo durante o sono, poderemos compreender
como sua atividade sugerida de auto-observação e de autocrítica — com
pensamentos tais como ‘agora ele está com muito sono para pensar’, ‘agora ele
está despertando’ — presta uma contribuição ao conteúdo do sonho.
Nessa altura,
podemos tentar um exame da atitude de auto-estima nas pessoas normais e nos
neuróticos.
Em primeiro
lugar, parece-nos que a auto-estima expressa o tamanho do eu; os vários
elementos que irão determinar esse tamanho são aqui irrelevantes. Tudo o que
uma pessoa possui ou realiza, todo remanescente do sentimento primitivo de
onipotência que sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a aumentar sua
auto-estima.
Aplicando nossa
distinção entre as pulsões sexuais e as do eu , devemos reconhecer que a
auto-estima depende intimamente da libido narcisista. Aqui somos apoiados por
dois fatos fundamentais: o de que, nos parafrênicos, a auto-estima aumenta,
enquanto que nas neuroses de transferência ela se reduz; e o de que, nas
relações amorosas, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de auto-estima,
enquanto que o de ser amado os aumenta. Como já tivemos ocasião de assinalar, a
finalid-ade e satisfação em uma escolha objetal narcisista consiste em ser amado.
Além disso, é
fácil observar que o investimento objetal libidinal não eleva a auto-estima. A
dependência ao objeto amado tem como efeito a redução daquele sentimento: uma
pessoa apaixonada é humilde. Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de
uma parte de seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra
pessoa por ele. Sob todos esses aspectos, a auto-estima parece ficar relacionada
com o elemento narcisista do amor.
A compreensão da
impotência, da própria incapacidade de amar, em conseqüência de perturbação
física ou mental, exerce um efeito extremamente diminuidor sobre a auto-estima.
Aqui, em minha opinião, devemos procurar uma das fontes dos sentimentos de
inferioridade experimentados por pacientes que sofrem de neuroses de
transferência, sentimentos que esses pacientes estão prontos a relatar. A
principal fonte desses sentimentos é, contudo, o empobrecimento do eu , por causa
das enormes investimentos libidinais dele retiradas — por causa, vale dizer, do
dano sofrido pelo eu em função de
tendências sexuais que já não estão sujeitas a controle.
Adler [1907] tem
razão quando sustenta que, quando uma pessoa dotada de vida mental ativa
reconhece uma inferioridade em um de seus órgãos, isso age como estímulo,
provocando nessa pessoa um nível mais elevado de realização mediante
supercompensação. Mas, definitivamente, incorreríamos em exagero se, seguindo o
exemplo de Adler, procurássemos atribuir toda realização bem-sucedida a essa
inferioridade original de um órgão. Nem todos os pintores são desfavorecidos
por uma visão deficiente, e nem todos os oradores foram originariamente gagos.
E existem numerosos exemplos de excelentes realizações que brotam de
propriedades orgânicas superiores. Na etiologia das neuroses, a
inferioridade orgânica e o desenvolvimento imperfeito desempenham papel
insignificante — semelhante ao desempenhado por material perceptual geralmente
ativo na formação dos sonhos. As neuroses fazem uso de tais inferioridades como
um pretexto, assim como o fazem em relação a qualquer outro fator que se preste
a isso. Somos tentados a acreditar numa paciente neurótica quando ela nos diz
que era inevitável adoecer, visto que, por ser feia, deformada ou carente de
encantos, ninguém poderia amá-la; logo, porém, outra neurótica nos prestará
melhores esclarecimentos — pois persiste em sua neurose e em sua aversão à
sexualidade, embora pareça mais desejável, e seja, de fato, mais desejada, do
que a mulher comum. Em sua maioria, as mulheres histéricas são representantes
atraentes e mesmo belas de seu sexo, ao passo que, por outro lado, a freqüência
da fealdade, de defeitos orgânicos e de enfermidades nas classes inferiores da
sociedade não aumenta a incidência da doença neurótica entre elas.
As relações entre
auto-estima e erotismo — isto é, investimentos objetais libidinais — podem ser
expressas concisamente da seguinte forma. Devemos distinguir dois casos,
conforme os investimentos eróticos sejam eu -sintônicas, ou, pelo contrário,
tenham sofrido recalque. No primeiro caso (onde o uso feito da libido é eu
-sintônico), o amor é avaliado como qualquer outra atividade do eu . O amar em
si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a auto-estima, ao passo
que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o objeto amado, eleva-a
mais uma vez. Quando a libido é reprimida, sente-se o investimento erótico como
grave esgotamento do eu ; a satisfação do amor é impossível e o reenriquecimento
do eu só pode ser efetuado por uma
retirada da libido de seus objetos. A volta da libido objetal ao eu e sua transformação no narcisismo representa,
por assim dizer, um novo amor feliz; e, por outro lado, também é verdade que um
verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual a libido objetal
e a libido do eu não podem ser
distinguidas.
A importância e o
grau de extensão dos tópicos constituem minha justificativa para acrescentar
algumas poucas observações de concatenação algo desconexa.
O
desenvolvimento do eu consiste num
afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de
recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da
libido em direção a um ideal do eu
imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse
ideal.
Ao mesmo tempo, o
eu emite investimentos objetais
libidinais. Torna-se empobrecido em benefício desses investimentos, do mesmo
modo que o faz em benefício do ideal do eu , e se enriquece mais uma vez a partir
de suas satisfações no tocante ao objeto, do mesmo modo que o faz, realizando
seu ideal.
Uma parte da
auto-estima é primária — o resíduo do narcisismo infantil; outra parte decorre
da onipotência que é corroborada pela experiência (a realização do ideal do eu
), enquanto uma terceira parte provém da satisfação da libido-objetal.
O ideal do eu impõe severas condições à satisfação da
libido por meio de objetos, pois ele faz com que alguns deles sejam rejeitados
por seu censor como sendo incompatíveis onde não se formou tal ideal, a
tendência sexual em questão aparece inalterada na personalidade sob a forma de
uma perversão. Tornar a ser seu próprio ideal, como na infância, no que diz
respeito às tendências sexuais não menos do que às outras — isso é o que as
pessoas se esforçam por atingir como sendo sua felicidade.
O estar apaixonado
consiste num fluir da libido do eu em
direção ao objeto. Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as
perversões. Exalta o objeto sexual transformando-o num ideal sexual. Visto que,
com o tipo objetal (ou tipo de ligação), o estar apaixonado ocorre em virtude
da realização das condições infantis para amar, podemos dizer que qualquer
coisa que satisfaça essa condição é idealizada.
O ideal sexual
pode fazer parte de uma interessante relação auxiliar com o ideal do eu . Ele
pode ser empregado para satisfação substitutiva onde a satisfação narcisista
encontra reais entraves. Nesse caso, uma pessoa amará segundo o tipo narcisista
de escolha objetal: amará o que foi outrora e não é mais, ou então o que possui
as excelências que ela jamais teve (cf. (c) [ver em [1]]). A fórmula paralela à
que se acaba de mencionar diz o seguinte: o que possui a excelência que falta
ao eu para torná-lo ideal é amado. Esse
expediente é de especial importância para o neurótico, que, por causa de suas
excessivos investimentos objetais, é empobrecido em seu eu , sendo incapaz de
realizar seu ideal do eu . Ele procura então retornar, de seu pródigo dispêndio
da libido em objetos, ao narcisismo, escolhendo um ideal sexual segundo o tipo
narcisista que possui as excelências que ele não pode atingir. Isso é a cura
pelo amor, que ele geralmente prefere à cura pela análise. Na realidade, ele
não pode crer em outro mecanismo de cura; em geral traz para o tratamento
expectativas dessa espécie, dirigindo-as à pessoa do médico. A incapacidade de
amar do paciente, resultante de suas repressões extensivas, naturalmente
atrapalha um plano terapêutico dessa natureza. Muitas vezes, se nos depara um
resultado não pretendido quando, por meio do tratamento, o paciente é
parcialmente liberado de suas repressões: ele suspende o tratamento a fim de
escolher um objeto amoroso, deixando que sua cura continue a se processar por
uma vida em comum com quem ele ama. Poderíamos ficar satisfeitos com esse
resultado, se ele não trouxesse consigo todos os perigos de uma dependência
mutiladora em relação àquele que o ajuda.
O ideal do
eu desvenda um importante panorama para
a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse
ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família,
uma classe ou uma nação. Ele vincula não somente a libido narcisista de uma
pessoa, mas também uma quantidade considerável de sua libido homossexual,,
que dessa forma retorna ao eu . A falta de satisfação que brota da não
realização desse ideal libera a libido homossexual, sendo esta transformada em
sentimento de culpa (ansiedade social). Originalmente esse sentimento de culpa
era o temor de punição pelos pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o
seu amor; mais tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de
pessoas. A freqüente causação da paranóia por um dano ao eu , por uma
frustração da satisfação dentro da esfera do ideal do eu , é tornada assim mais
inteligível, bem como a convergência da formação do ideal e da sublimação no
ideal do eu , e ainda a involução das sublimações e a possível transformação de
ideais em perturbações parafrênicas.