Não possuímos nosso eu. Ele sopra sobre nós,
foge por muito tempo para o mundo exterior,
e volta em um suspiro.
- Hugo Von Hoffmannsthal
Todas as ideias, filosofias,
ciências, religiões, teorias são fruto de seu tempo, seu lugar, sua história.
Como afirma Marx, os homens fazem sua própria história, mas não a fazem de
acordo com sua vontade, e sim a partir das condições herdadas do passado. São
as ideias que recebemos a nossa matéria prima para formular nosso próprio
pensamento, reelaborá-lo, refutá-las, recriar nossa visão de mundo. Partimos
sempre do passado para construir o futuro.
Essa noção, profundamente
materialista, está sempre presente no belo documentário “A invenção da
psicanálise” (1997), de Elisabeth Roudinesco e Elisabeth Kapnist, que procura
retraçar a origem do pensamento psicanalítico desde a primeira formação de
Sigmund Freud – pai da doutrina psicanalítica – no hospital de Salpêtrière com Jean-Martin
Charcot, até a decadência da psicanálise nos EUA a partir dos anos 1970 e a
hegemonia farmacológica.
Longe de querer apresentar Freud
como um ídolo intocável, o documentário, fundado em uma sólida pesquisa
histórica e na entrevista com psicanalistas, como a própria Roudinesco, que é
hoje uma das maiores pesquisadoras da história da psicanálise, apresenta a
psicanálise como um conhecimento em permanente transformação, que
freqüentemente contradiz seu próprio fundador. Entre o vasto panorama
apresentado no filme, algumas questões são fundamentais para podermos entender
como, longe de ser uma doutrina engessada e dogmática que repete os mesmos
“mandamentos sagrados” desde a época de Freud, a psicanálise é uma teoria viva,
polêmica, em constante transformação e cheia de divergências e atritos entre
seus teóricos e praticantes, inclusive antes da morte de seu fundador, em 1940.
Roudinesco, profunda conhecedora
de tais polêmicas, situa bem os primórdios da teoria psicanalítica como sendo o
lugar da cura pela fala, onde, a partir da escuta dos pacientes se procura
entender as origens do sofrimento psíquico na história do desenvolvimento da
subjetividade daquele indivíduo, muito distinto da “lista de sintomas” que
manuais de psiquiatria modernos como o DSM transformaram na prática cotidiana
dos médicos. Contando a história de um dos mais célebres paciente de Freud,
Sergei Constantinovich Pankeiev – mais conhecido na historiografia como “o
homem dos lobos” – Roudinesco cita uma frase de Freud que ilustra bem a sua
concepção distinta das práticas médicas da época. Sergei, tendo passado por
muitas clínicas e médicos renomados, conta toda sua história a Freud, que diz a
ele: “Procuraram os motivos de seu mal em um penico. Agora, vamos procurá-los
em você.”
Outros entrevistados no
documentário também chamam a atenção para o papel eminentemente revolucionário
que Freud cumpriu para a compreensão da mente humana, sendo pioneiro em afirmar
que a homossexualidade não era um crime, um pecado ou uma doença; chamando a
atenção para o caráter universal e profundo da sexualidade, inclusive nas
crianças; mostrando e elucidando o sofrimento psíquico das mulheres histéricas
que eram relegadas pela medicina tradicional. Tudo isso é dito sem que se deixe
de lado as contradições de Freud, que era um “bom burguês”, como afirma um dos
entrevistados. Sua relação com os analistas adeptos do marxismo, como Wilhelm
Reich, mostram isso nitidamente, pois Freud o expulsa da sua sociedade de forma
absolutamente intransigente. Essas limitações, no entanto, não devem impedir
que nos apropriemos da teoria de Freud.
O filme é preciso em demonstrar
não apenas o papel fundamental que cumpre o contexto histórico para o
desenvolvimento da doutrina psicanalítica, mas, inclusive, para a evolução das
próprias doenças que procura tratar. Roudinesco, fazendo uma comparação com as
doenças orgânicas, mostrando como à evolução da medicina corresponde
paralelamente uma evolução das doenças (da sífilis à AIDS, como ela
exemplifica), chega às doenças mentais mostrando como paralelamente ao
desenvolvimento do tratamento da histeria (a psicopatologia mais recorrente no
século XIX e com a qual Freud inicia sua investigação) corresponde um
desenvolvimento histórico das próprias doenças, em que hoje a depressão cumpre
um papel análogo ao que era a histeria há cem anos.
Além de expressar como Freud não
era um homem imune às suas próprias contradições sociais, o documentário é
profundo ao propor a reflexão de como as condições sociais afetam o próprio
desenvolvimento da psicanálise, castrando-a de seu potencial transformador. Um
dos momentos em que isso ocorre é no exílio forçado dos psicanalistas judeus
após a ascensão do nazismo em Viena e Berlim. Nesse momento, Jones, um dos
discípulos de Freud, irá propor sua via para “salvar” a psicanálise a partir de
sua adaptação ao regime nazista. Freud, tendo se refugiado em Londres, em
nenhum momento de opõe a essa prática. O resultado disso é uma psicanálise
deformada e monstruosa, que serve para justificar as atrocidades do regime
nazista. O filme nos coloca então a pergunta: teria restado ali algo da
psicanálise, efetivamente?
Essa questão teórica não é menor,
pois, se dentro dessa construção teórica riquíssima que é a psicanálise, há um
amplo espaço para o debate e a divergência, cabe questionarmos até que ponto a
sua transformação não retira seu potencial libertador, transfomando-o em seu
contrario. Um exemplo nítido da transformação da psicanálise de método
terapêutico e teoria do funcionamento psíquico em uma norma reguladora foi
oferecido pela atitude vergonhosa de analistas franceses que assinaram um
manifesto contra a legalização dos casamentos homoafetivos, alegando, entre
outros absurdos, que uma criança criada por um casal homossexual teria seu
processo edipiano prejudicado. É de fazer Freud revirar em seu túmulo.
A mesma questão é colocada em outro grau quando, após a destruição da escola de Berlim, mesmo com toda sua capitulação ao regime, esses mesmos analistas migram para os EUA e iniciam um novo tipo de adaptação da psicanálse, que é à sociedade pragmática e puritana norte-americana, que procura a todo custo erradicar a tristeza e promover a saída individual para os males. Essa mentalidade deu origem à nefasta política de higienização mental e do uso da psiquiatria como controle social, uma tradição que até hoje sobrevive na medicalização da vida, ainda que essa psicanálise deturpada tenha sido deixada de lado ao longo dos anos por um aliado muito mais poderoso: a poderosa indústria farmacológica, que gera bilhões com a ideia milagrosa de uma pílula que resolverá todos os males. A ideia que propunha a psicanálise desde sua origem, e que se mantém em todas as suas grandes linhas, é profundamente oposta: é a de que há determinações no sujeito que escapam ao seu controle, fazem parte de seu inconsciente, sua história, e o processo de análise consiste precisamente em tentar se aproximar dessas determinações para que possamos ter algum tipo de conhecimento e, portanto, de controle maior sobre nossas ações, sentimentos, pensamentos. Mas sem nunca chegar a uma cura mágica ou uma ilusória felicidade plena.
Assista ao documentário: