Aí vai um vídeo de um debate muito interessante sobre marxismo e psicanálise promovido pelo Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) na Argentina em 2009. Infelizmente está em espanhol e não tem legendas, mas grande parte de seu conteúdo é semelhante ao que foi sintetizado por Alejandro Vainer no texto publicado anteriormente. Mesmo assim, acho que vale à pena assistir.
Marxismo y Psicoanálisis - Primer encuentro - TVPTS.TV - El canal de la izquierda
segunda-feira, 30 de junho de 2014
sábado, 28 de junho de 2014
Psicanálise e Marxismo. Passado e Presente
[Artigo publicado originalmente na revista Ideas de Izquierda número 9, traduzido para publicação neste blog]
Por Alejandro Vainer
Os ensinamentos de Freud são tão importantes para o
marxismo e para a política: porque convergem ratificando, na análise do sujeito
extendido até demonstrar as determinações do sistema, em sua mais profunda
subjetividade, as verdades que Marx analisou nas estruturas
"objetivas" do sistema de produção.
- León Rozitchner, Freud e os limites do
individualismo burguês.
É auspicioso o espaço aberto pela IdZ (Ideas de Izquierda) sobre a
questão do marxismo e da psicanálise. Primeiro, o texto de Claudia Cinatti,
"A psicanálise em questçao", e em seguida "A psicanálise não é
marxismo, mas...", de Eduardo Grüner. Ambos questionam a partir do
marxismo o lugar da psicanálise e dos psicanalistas. No entanto, apenas mencionam
a produção de distintos autores que entrecruzam psicanálise e marxismo, em
especial na Argentina. Cinnati se refere a debates de autores franceses,
deixando de lado muito do que foi produzido em outros lugares. Ao fim, propõe:
"desenvolver esta crítica teórica (e prática) foi um dos propósitos da
chamada 'esquerda freudiana'. Este objetivo falido foi retomado posteriormente
por J. Bleger e o movimento Plataforma Internacional. Quiçá tenha chegado o
momento de retomar este caminho". Não chegou o momento de retomá-lo, mas
sim de tornar visível o já produzido. Este é um requisito para poder avançar no
tema. Caso contrário, vamos nos deparar com duas consequências.
1- Deixar no esquecimento uma série de autores fundamentais. Isto não é
apenas um problema histórico. Nos deixa órfãos de mestres, genealogias e
heranças.
2- Empobrecer as polêmicas e as possíveis ações que promovam os
cruzamentos entre psicanálise e marxismo. Retornamos uma vez mais ao Freud
burguês e à crítica do establishment psicanálitico. E nos
esquivamos do que foi produzido à esquerda de Freud.
Por tudo isso, sintetizaremos algumas histórias e caminhos atuais.[1]
I
A psicanálise e o marxismo são plurais. Não há “um marxismo” e “uma
psicanálise”. Ao longo dos anos houve e há diferentes leituras e práticas do
marxismo e da psicanálise. Dentro da psicanálise há distintas escolas que
consideram de forma diferente a constituição e o funcionamento do psiquismo.
Dentro do marxismo, divergências políticas e teóricas foram recorrentes no
mundo desde fins do século XIX. Se não podemos falar de uma psicanálise e um
marxismo, a lógica nos indica que os entrecruzamentos possíveis entre “as”
psicanálises e “os” marxismos se multiplicam. Pode haver um abismo de
interesses teóricos, políticos e clínicos. Também distintos contextos,
projetos, ideologias e epistemologias. Mas ao invés de se considerar que há
tentativas diversas de se encontrar pontos de contato se infere a utópica ideia
de um engendro: uma só mega teoria “freudomarxista” que supostamente dá
resposta a tudo. A partir desse pressuposto, se tornou um clássico desdenhar
todo autor que tenha tentado algum cruzamento entre marxismo e psicanálise. O
curioso é que o caminho é o mesmo à direita e à esquerda: acusar de “freudomarxista”,
assegurar seu fracasso e passar a outra coisa. Foram denominados “freudomarxistas”
apesar de que nenhum dos autores se reconheceu como tal. Não tiveram em comum
nada além de tentar, com sucessos distintos, algum cruzamento entre Freud e
Marx. Na Argentina, o neologismo “psicobolche” desqualifica e fecha a porta
para qualquer tentativa de retomar algum caminho aberto. E seus efeitos
persistem. Seja por desqualificação ou simples omissão. O problema não é quando
aparece pela direita, o que é de se esperar. A questão é quando ocorre dentro
do campo do marxismo de hoje.
II
Os primeiros psicanalistas marxistas se autodenominaram esquerda freudiana. Este movimento da
década de ’20 do século passado incluía psicanalistas que eram marxistas como
Wilhelm Reich, Otto Fenichel, Sigfried Bernfeld, Vera Schmidt e outros. Tiveram
distintas militâncias políticas e tentaram ver que contribuições mútuas poderia
haver entre psicanálise e marxismo. No entanto, esta esquerda freudiana foi
combatida tanto no campo da psicanálise como do marxismo de então, em especial
em sua versão estalinista. No campo da psicanálise, a Associação Psicanalítica
Internacional (IPA) e outras “mundiais psicanalíticas”, foram e são de direita.
O clima político na Europa, com o ascenso do nazismo, levou a que a instituição
criticasse aos psicanalistas com militância política de esquerda. Finalmente,
por temor a represálias, excluiu tanto seus membros judeus como aos marxistas,
com a desculpa de uma suposta política de sobrevivência para a psicanálise. Na
realidade, deveríamos dizer para a instituição psicanalítica. Isto foi
avalizado pelo próprio Freud, a quem quase custou a vida sua teimosia em permanecer
em Viena. Este foi o motivo do exílio de muitos psicanalistas, inclusive
daqueles da esquerda freudiana.
Por outro lado, a história da psicanálise na União Soviética é pouco conhecida.
Previamente à revolução havia um importante movimento psicanalítico. Em 1904
foi traduzido para o russo A
interpretação dos sonhos, a primeira obra de Freud que se publicou em outra
língua. Depois da revolução de 1917 a psicanálise continuou se desenvolvendo,
com experiências inovadoras como o “Lar Experimental de crianças” de Vera
Schmidt. É necessário destacar que Trotsky sempre teve uma atitude positiva
diante do descobrimento freudiano, considerando as possibilidades que tinha sua
articulação com o marxismo[2]. Mas, após a morte de
Lenin e o ascenso de Stalin, a psicanálise, junto com outras correntes, foi eliminada
como “antissocialista”[3]. A partir de então o
estalinismo atacou a psicanálise acusando-a de “burguesa”. E a qualquer tentativa
de relação entre psicanálise e marxismo.
Mas, como dizíamos, não existe uma mega teoria “freudomarxista”, mas sim
produções que são absolutamente diversas. Tomemos dois exemplos.
- Wilhelm Reich supunha que as neuroses se deviam à falta de uma
satisfação sexual plena e repetida na relação sexual genital. Esta teoria foi
um dos fundamentos para organizar dentro de sua militância no Partido Comunista
na Alemanha a “Associação para uma Política Sexual Proletária”, SEXPOL, onde se
dava informação sobre sexualidade e métodos contraceptivos para mais de 40.000
aderentes. Nem o Partido Comunista nem a Associação Psicanalítica Internacional
aceitaram a proposta e terminou fora das duas instituições em pouco tempo. Após
o triunfo do nazismo em 1933, escreveu seu livro mais importante: Psicanálise das massas e o fascismo,
onde analizava como o nazismo havia penetrado e triunfado na subjetividade dos
alemães[4].
- A proposta da chamada “esquerda lacaniana” parte de certos cruzamentos
entre Lacan e Marx. É um movimento heterogêneo neoestruturalista, no qual
muitos dos autores supõem que o marxismo está “superado”[5]. São incluídos autores tão
díspares quanto Alan Badiou, Slavoj Zizek e Ernesto Laclau. O argentino Jorge
Alemán, conselheiro cultural da embaixada argentina na Espanha, e tão
entusiasta quanto Laclau pelo presente governo, é um de seus representantes
aqui. E propõe a concepção lacaniana de Sujeito como única saída para a crise
do marxismo: “a esquerda marxista pode elaborar sua finalidade no único âmbito
que essa finalidade pode adquirir um valor distinto ao de fechamento ou
cancelamento, um fim que não é tempo cumprido mas sim oportunidade eventual
para outro começo. Esse âmbito talvez possa ser o pensamento de Jacques Lacan,
única teoria materialista sobre o mal estar da civilização próprio do século
XXI”[6]. O duelo por um marxismo
revolucionário passa por retomar um Marx por meio de Lacan. O capitalismo se
transforma em um discurso e a luta de classes em um populismo de
centro-esquerda. A essa altura, não restam dúvidas. Psicanálise e marxismo são
plurais e seus cruzamentos levam a diferentes lugares.
III
Em nosso país houve e há distintos entrecruzamentos que é
necessário destacar. A obra de José Bleger foi a primeira tentativa de encontro
entre psicanálise e marxismo. Em Psicanálise
e dialética materialista. Estudos sobre a estrutura da psicanálise[7], tenta uma revisão
da psicanálise com a dialética materialista para chegar à suposta
cientificidade, tomada como sinônimo de materialismo. O objetivo de Bleger, membro
do PC, era poder “defender” a psicanálise em um contexto em que o estalinismo havia
decidido que só havia uma psicologia científica, a reflexologia. A constituição
da Plataforma Internacional em 1969,
durante um Congresso Psicanalítico Internacional de Psicanálise em Roma, foi um
acerto. Isto ocorre em uma época em que se desenvolvem processos
revolucionários anticapitalistas e antiimperialistas (desde o maio francês ao
Cordobazo). Um grupo de psicanalistas organiza um “contracongresso” para se
opor a uma psicanálise que evitava o compromisso social e estava a serviço das
classes dominantes. A partir dessa perspectiva se funda neste ano Plataforma Argentina. Em 1971, seus
integrantes renunciam por motivos ideológicos à IPA. Entre seus membros estavam
Marie Langer, Gilou García Reynoso, Armando Bauleo, Hernán Kesselman, Juan
Carlos Volnovich, Emilio Rodrigué e Eduardo Pavlovsky, entre outros. Junto
deles renunciaram os integrantes do grupo Documento,
liderado por Fernando Ulloa. Os dois tomos de Cuestionamos sintetizam algumas de suas contribuições teóricas[8].
A epígrafe do livro é clara: “Freud e Marx descobriram, igualmente, por trás de
uma realidade aparente, as forças verdadeiras que nos governam: Freud, o
inconsciente; Marx a luta de classes”.
Estes grupos habilitaram a formação psicanalítica por fora da
instituição oficial. Isso possibilitou, desde então, a capacitação de
psicanalistas em outros espaços. Em 1972 se criou o Centro de Docência e
Investigação dependente da Coordenadora de Trabalhadores de Saúde Mental. Ali
se ministrava formação geral e específica em Psicanálise e Saúde Mental.
Incluía “Materialismo Histórico e Dialético” como matéria básica para todo
Trabalhador de Saúde Mental (TSM). Sua prática incluía o trabalho em diferentes
hospitais públicos e sua participação sindical e política. Por exemplo, deve se
destacar como a Federação Argentina de Psiquiatras foi um dos sindicatos mais
combativos do campo da saúde nesses anos.
Mas, primeiro com a formação da Triple A, e em seguida com a
instauração da última ditadura, muitos dos TSM de esquerda tiveram que se
exilar. Outros passaram à reclusão dos consultórios privados. Alguns resistiram
à ditadura, em especial em organizações de Direitos Humanos. Segue sendo
necessário mencionar o terrorismo de Estado com seus 340 campos de concentração
e os 30.000 desaparecidos, entre os quais se encontravam 110 Trabalhadores de
Saúde Mental e 66 estudantes[9].
Muitos destes psicanalistas desenvolveram sua produção teórica, sua prática
clínica e seu compromisso político desde então e abriram caminhos para nós que
continuamos por este percurso[10].
Mas é necessários nos determos em alguns autores inevitáveis hoje.
León Rozithcner estudou e se doutorou em filosofia em Paris.
Foi um intelectual que construiu sua obra a partir do compromisso com os
distintos momentos históricos do país e isto excede o encontro entre
psicanálise e marxismo. Foi professor de várias gerações de psicanalistas,
inclusive de muitos de Plataforma e Documento. É quem realizou o mais fértil
cruzamento entre Marx e Freud para poder compreender como a dominação do
capitalismo se constitui em nossa subjetividade. Seu “tríptico psicanalítico”
começa com Freud e os limites do
individualismo burguês (1973). Depois continua em seu exílio em Venezuela
com Perón: entre la sangre y el tiempo.
Lo inconciente y la politica (1979) e Freud
y el problema del poder (1982). Em seguida seu desenvolvimento se
aprofundou em relação ao cristianismo e o capitalismo. Finalmente, seu
postulado sobre o lugar da “mãe” e seu papel carnal na constituição de nossa
subjetividade o levou a reformular o conceito de materialismo em Marx[11].
Enrique Carpintero é psicanalista. Trabalhou na equipe de
assistência à CONADEP, depois organizou a equipe de crise do Plan Boca
Barracas. Em 1991 fundou a Revista Topía,
Psicoanálisis, sociedade y cultura. Como diretor da mesma abriu um espaço
que excede a uma mera revista, já que implica em uma proposta com uma editoria
e uma equipe de trabalho comprometida com o movimento social e político[12].
Durante este intervalo foram publicados textos e livros de diferentes autores,
entre eles Helmut Reiche, Christophe Dejours, Franco Basaglia, James Petras,
Cyril Smith, René Major, Fernando Ulloa, León Rozitchner, Armando Bauleo,
Vicente Zito Lema, Juan Carlos Volnovich, Alfredo Grande,
Eduardo Grüner, Andrea D’Atri, Pablo Rieznik, Maristella Svampa, Miguel
Benasayag, Silvia Bleichmar, Eduardo Pavlovsky e tantos outros que criticaram
uma psicanálise que se cria por fora das determinações sociais e a partir de
uma posição de esquerda. Em sua produção, Carpintero continua aquilo que foi
trabalhado por Rozítchner, partindo de considerar como o poder atua na
subjetividade a partir de dentro.
Em sua obra encontramos ideias que permitem avançar nessa
perspectiva a partir do entrecruzamento entre Freud, Spinoza e Marx. Sua
concepção de “corposubjetividade” implica uma subjetividade corporal que se constrói
em uma intersubjetividade no interior de uma cultura. Se forja na conjunção de
três aparatos: o orgânico, o psíquico e o cultural. Esta concepção permite sair
dos reducionismos ao considerar a subjetividade de forma complexa em suas
determinações sociais e políticas. Além disso, desenvolveu uma série de
conceitos para desvendar as novas subjetividades produzidas pelo capitalismo
atual que se sustenta na fragmentação, a violência destrutiva e
auto-destrutiva. Para isso reformula de uma forma original o conceito de pulsão
de morte, e como o poder capitalista o utiliza para novas formas de dominação[13]
Neste percurso vimos diferentes cruzamentos entre psicanálise
e marxismo. A questão é se permanecem desqualificados, menosprezados ou
esquecidos. Visibilizá-los é o primeiro passo para continuar nesse caminho,
para o qual consideramos que são ferramentas necessárias não apenas para
debates e polêmicas, mas sim para os desafios políticos que nos cabem como
marxistas para enfrentar a dominação capitalista atual.
[1]
A maior parte destas questões foram trabalhadas em Vainer,
Alejandro, A la izquierda de Freud, Editorial
Topía, Buenos Aires, 2009. Também em Carpintero, Enrique e Vainer, Alejandro, Las huellas de la memoria. Psicoanálisis y
salud mental em la Argentina de los ’60 y ’70, Buenos Aires, Editorial
Topia, Tomo I (2004) e Tomo II (2005).
[2]
Apesar de sua posição
reacionária que o leva ao despropósito tanto de acusar Trotsky tanto de
inventar um “freudomarxismo pavloviano” como pelo suicídio de sua filha Zina,
pode-se ver os pormenores da posição de Trotsky em relação à psicanálise em
Chemouny, Jacky, Trotsky y el
psicoanálisis, Buenos Aires, Ed. Nueva Visión, 2007.
[3] Miller, Marin A., Freud y los bolcheviques. El psicoanálisis em la Rusia Imperial y em la
Unión Soviética, Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 2005.
[5] Stavrakakis, Yannis, La izquierda lacaniana. Psicoanálisis, teoría, política, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2010.
[6] 6. Alemán, Jorge, Para una izquierda lacaniana. Intervenciones y textos, Buenos Aires, Grama, 2009, pág. 21.
[9] Carpintero, Enrique y Vainer Alejandro, op. cit. Este
dado surge a partir da investigação que realizamos para este texto.
[10] Para consultar sua produção, pode
ser consultado Carpintero, Enrique y Vainer, Alejandro, op. cit.
[11]
Bensaid, Daniel; Marx Karl; Rozitchner, León, Volver a la
cuestión judía, Madrid, Gedisa, 2011. Rozitchner, León, Materialismo
ensoñado, Buenos Aires, Ed. Tinta Limón, 2011.
[12]
Esta posição levou ao longo dos anos a diferentes ações,
entre elas, desde o trabalho na fpabrica recuperada Grissinópoli até que hoje
alguns dos membros de Topía apoiemos
publicamente à FIT (Frente de Esquerda e dos Trabalhadores).
[13]
Para saber sobre isso se podem consultar os artigos
editoriais de Topía em www.topia.com.ar. Também em seus livros: Registros de lo negativo. El cuerpo como
lugar del inconsciente, el paciente limite y los nuevos dispositivos psicoanalíticos (1999). La alegría de lo
necesario. Las pasiones y el poder en Spinoza y Freud, (2003).
Repetir eterno de uma mente sem lembranças
Em “Recordar, repetir e
elaborar”, Freud inicia chamando a atenção para o fato de que, ao longo de sua
história até o momento da escrita desse texto – 1914 – a psicanálise já havia
passado por mudanças profundas, tanto em sua compreensão da formação e
constituição do psiquismo e de suas patologias, como, consequentemente, da
técnica terapêutica embasada por tais compreensões. Desde sua origem a partir das
experiências com a hipnose e a meta de fazer com que o paciente recordasse o
momento de origem do sintoma e ab-reagisse, passando pela técnica da sugestão e
interpretação por parte do médico, até, enfim, chegar à concepção de que não
era a meta do médico interpretar e comunicar ao paciente as suas memórias
reprimidas ou mesmo focar-se no momento de origem do sintoma, mas sim de
utilizar a interpretação para auxiliar o paciente a reconhecer suas
resistências para que ele conseguisse superá-las.
Em
todo o caso, sempre esteve em primeiro plano a questão da repressão e da
recordação – ainda que o próprio conceito de repressão (recalque) tal como o
conhecemos tenha demorado anos para surgir nesse processo. A teoria do trauma,
na qual um evento desencadeador dos sintomas seria reprimido formando os
sintomas, dá aos poucos lugar para uma teoria mais elaborada, mas que leva
sempre em consideração o jogo de forças que se estabelece entre o consciente e
o inconsciente – na primeira tópica – ou entre o Id, Ego e Superego – na
segunda tópica – ocupando a repressão um lugar destacado na conceituação
teórica e na preocupação terapêutica do analista. As resistências, tendo
surgido em primeiro lugar como processos necessários para a sobrevivência
psíquica do analisando, em algum momento tornam-se obstáculos causadores de
sintomas psíquicos, e por meio do processo analítico devem ser reveladas para
poderem ser superadas. Assim, trazer à tona – pelo menos em parte – do que se
oculta no inconsciente é uma parte essencial do processo terapêutico.
Há muito a
aprendermos no emblemático caso de Anna O., de Breuer, em que todas as
recomendações que seriam feitas por Freud ocorreram ao inverso: a transferência
deu lugar a um caso amoroso entre paciente e analista, e, em seguida, o médico
utilizou da sugestão hipnótica para tentar reprimir os sentimentos da sua
paciente, dessa forma, certamente fortalecendo enormemente as resistências de
sua paciente. Seu objetivo era erradicar a vivência desse amor que havia
causado desconforto tanto a ele e sua esposa, quanto à sua paciente.
No filme
“Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, escrito pelo brilhante roteirista
Charlie Kaufman, vemos um processo semelhante. O processo desenvolvido pelo Dr.
Howard Mierzwiak procura, por meios tecnológicos, erradicar – ou seja,
reprimir, como fica claro no decorrer do filme – as lembranças que causem mal
estar, tristeza, angustia ou qualquer sentimento desprazeiroso nos pacientes. Nas
palavras do médico, quando a pessoa “se sente infeliz e quer seguir adiante,
nós fornecemos essa possibilidade”. Freud afirma que, desde a hipnose, “O
objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado, sem dúvida. Em termos
descritivos: preenchimento das lacunas da recordação; em termos dinâmicos:
superação das resistências da repressão.” A empresa de Mierzwiak, sob o
sugestivo nome de “Lacuna”, procura fazer justamente o contrário: em termos
descritivos: criar lacunas de recordação; em termos dinâmicos: instaurar
resistências de repressão.
Tal técnica,
que procura criar uma “solução milagrosa” que evitaria os inevitáveis
desconfortos que todos passamos ao lidar com as situações difíceis da vida, não
pode deixar de lembrar as promessas da indústria farmacêutica moderna, que, em
particular em seus momentos de grande furor de marketing, promete curas
“milagrosas” para os problemas da vida, tal como foi com o boom do Prozac nos
anos noventa. Contudo, como Freud já mostrava há um século, não existem curas
milagrosas para as aflições humanas. E, como ele aponta em seu texto, quando o
paciente é incapaz de recordar, ou seja, de superar as resistências de
repressão, ele atua, repete comportamentos, reproduzindo na sua vida ou na
sessão analítica aquilo que é incapaz de recordar ou de traduzir em palavras. A
ideia da técnica analítica é que, por meio das palavras, do resgate simbólico
e, assim, da superação do reprimido, o analisando deixe de ser vítima da eterna
repetição, tornando-se progressivamente mais consciente dos processos psíquicos
que se dão em seu inconsciente e, desta forma, mais sujeito de suas próprias
ações e sentimentos.
Como aponta
Freud, “Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de
repetição, e que a repetição é transferência do passado esquecido,
[transferência] não só para o médico, mas para todos os âmbitos da situação
presente. Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando
se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação,
não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todos os demais
relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida, por exemplo quando, no
decorrer do tratamento, escolhe um objeto amoroso, toma para si uma tarefa,
começa um empreendimento. Quanto maior for a resistência, tanto mais o recordar
será substituído pelo atuar (repetir).”[1]
É exatamente
isso que se demonstra em “Brilho eterno...”. Mary Svevo, secretária da Lacuna,
se apaixona pelo seu patrão, Dr. Merzwiak. O sentimento amoroso de Svevo apresenta
um componente fortíssimo de idealização, de idolatria pelo médico, diante de
quem sente-se tola, e a quem reserva todas as qualidades do mundo, querendo a
todo momento impressionar: a qualidade da “transferência” se evidencia de forma
quase caricata, ainda que não exista uma relação de analista/analisando entre
ambos. Pois, como observa Freud, o amor de transferência pelo analista não
segue padrões distintos de todas as paixões da vida cotidiana: “(...) é verdade
que essa paixão consiste de novas edições de velhos traços e repete reações
infantis. Mas este é o caráter essencial de toda paixão. Não existe paixão que
não repita modelos infantis. É justamente o condicionamento infantil que lhe
confere o caráter compulsivo que lembra o patológico.” [2]
O médico,
diante de sua deslumbrada e belíssima secretária (interpretada por Kirsten
Dunst), se envolve em um caso extra-conjugal. Repetindo, como uma paródia, o
caso de Breuer, o caso entre Mary e Howard desperta o ciúme de sua esposa.
Utilizando de sua influência, para se livrar desse enorme problema, tal qual o
Dr. Breuer quis reprimir os sentimentos de Anna O., o Dr. Merzwiak estabelece
um “acordo” com Mary de que “o melhor para todos” seria submetê-la ao
procedimento de “apagar” seu caso amoroso, removendo-o da memória de Mary, e
todos seguiriam suas vidas como antes.
No entanto, na
ficção como na vida, as lições de Freud se revelam verdadeiras: Mary, impedida
de recordar, com a repressão artificial criada pelo procedimento bloqueando a
vivência de seu romance com Howard, irá atuar, repetir. Ela apaixona-se
novamente pelo médico, condenada a, impelida pelo seu inconsciente, repetir
infindavelmente o padrão de sua paixão. Finalmente, Howard revela a Mary o que
ocorrera anteriormente, o que desperta sua indignação. Talvez, diante de sua
tragédia de repetir aquilo que artificialmente fora reprimido, Mary tenha
finalmente se dado conta da falácia da “cura mágica” para os sofrimentos
inventada pelo Dr. Merzwiak. E, assim, decide enviar a todos os pacientes seus
históricos, dizendo a cada um o que foi reprimido de suas recordações.
Assim, os
pacientes de Dr. Merzwiak se deparam, querendo ou não, com o fato de que nossos
comportamentos são condicionados por nossa história, por nossa vivência,
tenhamos ou não consciência disso. E que não há “máquina mágica” capaz de
impedir que tenhamos que lidar com os fantasmas de nosso passado para que
possamos preparar, de forma consciente, nosso porvir. Se é verdade que nunca
seremos capaz de conhecer tudo aquilo que se oculta em nosso inconsciente e
sermos completamente conscientes de nossos processos psíquicos, é um fato
também que procurar reprimir aquilo que não nos agrada não será uma solução
para a felicidade. Como diz Mary em determinado momento do filme: os bebês são tão
puros, tão livres e tão limpos; e os adultos são essa confusão de tristeza e
fobias. Pode ser. Mas não há “novo começo” possível: viver deixa marcas e cria
nosso psiquismo tal qual ele é; tudo o que podemos fazer é tentar desvendar os
mecanismos de repressão que criamos para tentar ser mais conscientes daquilo
que fazemos.
[1]
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar.
P. 195 In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[2]
FREUD, S. Observações sobre o amor de
transferência. p. 223. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
Começo
O mundo faz nossa vida, a nossa vida nos faz, e só depois disso podemos lutar, arduamente, para fazer nossa vida, e para que essa possa, também, fazer o mundo. Sujeitos-objetos lutando para transformar aquilo que somos.
Esse blog é para tentar se enfiar um pouco no meio de tudo isso. De pensar como nós somos feitos pela vida; como se formam nossos pensamentos, nossas vontades, nossa subjetividade. E, a partir daí, como estes pensam o mundo, a sua própria transformação, atuam sobre a realidade.
Para ser mais específico: a ideia é tentar partir de duas teorias feitas para a prática, e, no seu cruzamento, procurar compreender melhor a mente humana, suas possibilidades e limitações.
Essas teorias são o marxismo e a psicanálise. Analisar o ser humano, como animal social, cultural, histórico e subjetivo. Como pensador e criador de sua própria realidade; mas, criador submetido a circunstâncias independentes de sua vontade, circunstâncias que estão colocadas, antes de seu nascimento, pela história e pela sociedade. Não há existência como ser autônomo, nem autonomia possível por fora da transformação da sociedade. O indivíduo só é porque existe uma sociedade; e não há sociedade senão por meio de uma composição, uma sobreposição, de indivíduos.
Como qualquer ser humano, começo pelas inquetações e angústias que me foram oferecidas pela história de minha própria vida. Por uma hesitação contemplativa diante de tamanho desafio. Por perguntas. Um ponto-e-vírgula antes da exclamação. Um ponto-e-vírgula que me foi legado, uma cicatriz que dói, só de lhe tocar.
Espero que vocês que estão aí possam perguntar junto comigo. A solidão é invencível quando estamos diante de coisas muito maiores do que nós mesmos.
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