Em “Recordar, repetir e
elaborar”, Freud inicia chamando a atenção para o fato de que, ao longo de sua
história até o momento da escrita desse texto – 1914 – a psicanálise já havia
passado por mudanças profundas, tanto em sua compreensão da formação e
constituição do psiquismo e de suas patologias, como, consequentemente, da
técnica terapêutica embasada por tais compreensões. Desde sua origem a partir das
experiências com a hipnose e a meta de fazer com que o paciente recordasse o
momento de origem do sintoma e ab-reagisse, passando pela técnica da sugestão e
interpretação por parte do médico, até, enfim, chegar à concepção de que não
era a meta do médico interpretar e comunicar ao paciente as suas memórias
reprimidas ou mesmo focar-se no momento de origem do sintoma, mas sim de
utilizar a interpretação para auxiliar o paciente a reconhecer suas
resistências para que ele conseguisse superá-las.
Em
todo o caso, sempre esteve em primeiro plano a questão da repressão e da
recordação – ainda que o próprio conceito de repressão (recalque) tal como o
conhecemos tenha demorado anos para surgir nesse processo. A teoria do trauma,
na qual um evento desencadeador dos sintomas seria reprimido formando os
sintomas, dá aos poucos lugar para uma teoria mais elaborada, mas que leva
sempre em consideração o jogo de forças que se estabelece entre o consciente e
o inconsciente – na primeira tópica – ou entre o Id, Ego e Superego – na
segunda tópica – ocupando a repressão um lugar destacado na conceituação
teórica e na preocupação terapêutica do analista. As resistências, tendo
surgido em primeiro lugar como processos necessários para a sobrevivência
psíquica do analisando, em algum momento tornam-se obstáculos causadores de
sintomas psíquicos, e por meio do processo analítico devem ser reveladas para
poderem ser superadas. Assim, trazer à tona – pelo menos em parte – do que se
oculta no inconsciente é uma parte essencial do processo terapêutico.
Há muito a
aprendermos no emblemático caso de Anna O., de Breuer, em que todas as
recomendações que seriam feitas por Freud ocorreram ao inverso: a transferência
deu lugar a um caso amoroso entre paciente e analista, e, em seguida, o médico
utilizou da sugestão hipnótica para tentar reprimir os sentimentos da sua
paciente, dessa forma, certamente fortalecendo enormemente as resistências de
sua paciente. Seu objetivo era erradicar a vivência desse amor que havia
causado desconforto tanto a ele e sua esposa, quanto à sua paciente.
No filme
“Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, escrito pelo brilhante roteirista
Charlie Kaufman, vemos um processo semelhante. O processo desenvolvido pelo Dr.
Howard Mierzwiak procura, por meios tecnológicos, erradicar – ou seja,
reprimir, como fica claro no decorrer do filme – as lembranças que causem mal
estar, tristeza, angustia ou qualquer sentimento desprazeiroso nos pacientes. Nas
palavras do médico, quando a pessoa “se sente infeliz e quer seguir adiante,
nós fornecemos essa possibilidade”. Freud afirma que, desde a hipnose, “O
objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado, sem dúvida. Em termos
descritivos: preenchimento das lacunas da recordação; em termos dinâmicos:
superação das resistências da repressão.” A empresa de Mierzwiak, sob o
sugestivo nome de “Lacuna”, procura fazer justamente o contrário: em termos
descritivos: criar lacunas de recordação; em termos dinâmicos: instaurar
resistências de repressão.
Tal técnica,
que procura criar uma “solução milagrosa” que evitaria os inevitáveis
desconfortos que todos passamos ao lidar com as situações difíceis da vida, não
pode deixar de lembrar as promessas da indústria farmacêutica moderna, que, em
particular em seus momentos de grande furor de marketing, promete curas
“milagrosas” para os problemas da vida, tal como foi com o boom do Prozac nos
anos noventa. Contudo, como Freud já mostrava há um século, não existem curas
milagrosas para as aflições humanas. E, como ele aponta em seu texto, quando o
paciente é incapaz de recordar, ou seja, de superar as resistências de
repressão, ele atua, repete comportamentos, reproduzindo na sua vida ou na
sessão analítica aquilo que é incapaz de recordar ou de traduzir em palavras. A
ideia da técnica analítica é que, por meio das palavras, do resgate simbólico
e, assim, da superação do reprimido, o analisando deixe de ser vítima da eterna
repetição, tornando-se progressivamente mais consciente dos processos psíquicos
que se dão em seu inconsciente e, desta forma, mais sujeito de suas próprias
ações e sentimentos.
Como aponta
Freud, “Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de
repetição, e que a repetição é transferência do passado esquecido,
[transferência] não só para o médico, mas para todos os âmbitos da situação
presente. Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando
se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação,
não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todos os demais
relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida, por exemplo quando, no
decorrer do tratamento, escolhe um objeto amoroso, toma para si uma tarefa,
começa um empreendimento. Quanto maior for a resistência, tanto mais o recordar
será substituído pelo atuar (repetir).”[1]
É exatamente
isso que se demonstra em “Brilho eterno...”. Mary Svevo, secretária da Lacuna,
se apaixona pelo seu patrão, Dr. Merzwiak. O sentimento amoroso de Svevo apresenta
um componente fortíssimo de idealização, de idolatria pelo médico, diante de
quem sente-se tola, e a quem reserva todas as qualidades do mundo, querendo a
todo momento impressionar: a qualidade da “transferência” se evidencia de forma
quase caricata, ainda que não exista uma relação de analista/analisando entre
ambos. Pois, como observa Freud, o amor de transferência pelo analista não
segue padrões distintos de todas as paixões da vida cotidiana: “(...) é verdade
que essa paixão consiste de novas edições de velhos traços e repete reações
infantis. Mas este é o caráter essencial de toda paixão. Não existe paixão que
não repita modelos infantis. É justamente o condicionamento infantil que lhe
confere o caráter compulsivo que lembra o patológico.” [2]
O médico,
diante de sua deslumbrada e belíssima secretária (interpretada por Kirsten
Dunst), se envolve em um caso extra-conjugal. Repetindo, como uma paródia, o
caso de Breuer, o caso entre Mary e Howard desperta o ciúme de sua esposa.
Utilizando de sua influência, para se livrar desse enorme problema, tal qual o
Dr. Breuer quis reprimir os sentimentos de Anna O., o Dr. Merzwiak estabelece
um “acordo” com Mary de que “o melhor para todos” seria submetê-la ao
procedimento de “apagar” seu caso amoroso, removendo-o da memória de Mary, e
todos seguiriam suas vidas como antes.
No entanto, na
ficção como na vida, as lições de Freud se revelam verdadeiras: Mary, impedida
de recordar, com a repressão artificial criada pelo procedimento bloqueando a
vivência de seu romance com Howard, irá atuar, repetir. Ela apaixona-se
novamente pelo médico, condenada a, impelida pelo seu inconsciente, repetir
infindavelmente o padrão de sua paixão. Finalmente, Howard revela a Mary o que
ocorrera anteriormente, o que desperta sua indignação. Talvez, diante de sua
tragédia de repetir aquilo que artificialmente fora reprimido, Mary tenha
finalmente se dado conta da falácia da “cura mágica” para os sofrimentos
inventada pelo Dr. Merzwiak. E, assim, decide enviar a todos os pacientes seus
históricos, dizendo a cada um o que foi reprimido de suas recordações.
Assim, os
pacientes de Dr. Merzwiak se deparam, querendo ou não, com o fato de que nossos
comportamentos são condicionados por nossa história, por nossa vivência,
tenhamos ou não consciência disso. E que não há “máquina mágica” capaz de
impedir que tenhamos que lidar com os fantasmas de nosso passado para que
possamos preparar, de forma consciente, nosso porvir. Se é verdade que nunca
seremos capaz de conhecer tudo aquilo que se oculta em nosso inconsciente e
sermos completamente conscientes de nossos processos psíquicos, é um fato
também que procurar reprimir aquilo que não nos agrada não será uma solução
para a felicidade. Como diz Mary em determinado momento do filme: os bebês são tão
puros, tão livres e tão limpos; e os adultos são essa confusão de tristeza e
fobias. Pode ser. Mas não há “novo começo” possível: viver deixa marcas e cria
nosso psiquismo tal qual ele é; tudo o que podemos fazer é tentar desvendar os
mecanismos de repressão que criamos para tentar ser mais conscientes daquilo
que fazemos.
[1]
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar.
P. 195 In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[2]
FREUD, S. Observações sobre o amor de
transferência. p. 223. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
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