Dentro de duas semanas eu não tomarei mais antidepressivos. O que tomo atualmente, Pristiq, me acompanha há cerca de quatro anos. Comecei a tomá-lo depois de minha última recaída relativamente séria, após iniciar meu trabalho como professor de português no Ensino Médio da rede pública do estado de São Paulo. Nesse emprego, as doenças psíquicas são uma verdadeira epidemia, assolando os professores como algo quase corriqueiro, esperado.
Mas, por mais que a situação de calamidade completa da educação pública faça da escola um verdadeiro "caldo de cultura" para as doenças mentais, estou longe de querer reivindicar sua exclusividade para os professores. A categoria na qual trabalho hoje, os metroviários, também são um público muito acometido por esse tipo de mal. Meu pai e meu irmão, psiquiatras que por anos (ou décadas, no caso do meu pai) atenderam o convênio do metrô, sabem muito bem disso. Horários de trabalho caóticos, que numa mesma semana podem variar entre manhã, tarde e madrugada; operadores de trem que passam por situações de atropelamento; assédio moral,,, enfim, motivos não faltam também aos metroviários para adoecerem, e muito, somando esse tipo de doenças às inúmeras lesões físicas por esforço repetitivo que podem ser encontrada em cada estação de São Paulo. Serão os metroviários e professsores, então, gente especialmente vulnerável às doenças mentais? Não. Bancários, operários de fábrica (como o excelente documentário "Carne Osso" mostra em relação aos frigoríficos), trabalhadores do telemarketing, aeroviários, motoristas de ônibus... nomeie uma emprego, estude ele a fundo e você descobrirá como, certamente, além de destruir o corpo dos trabalhadores, esse trabalho corrói sua mente. Adoece, em todos os planos. É assim o trabalho no capitalismo. E, tragicamente, ainda persiste em ampla escala, mesmo entre a esquerda revolucionária, o bruto preconceito de que a depressão é "doença de rico". Nem sempre dessa forma tão crua; às vezes são "problemas ideológicos", "falta de convicção política", "falta de conviver com a classe trabalhadora"...
Então, passamos do problema um (a epidemia social das doenças psíquicas, com destaque acentuado para a depressão), para o problema dois: o profundo preconceito e estigma social que sofrem as pessoas vítimas desse mal em virtualmente todos os ambientes de nossa sociedade, inclusive os mais progressistas e questionadores. Eu, talvez por minha criação muito próxima do estudo desse mal, nunca me abalei com o preconceito alheio. Mas por isso mesmo sempre me encheu de fúria, e ainda enche, quando me deparo com o preconceito. Claro que ele é quase sempre fruto da incompreensão, mas a essa muitas vezes se soma a má fé, o dogmatismo, a estupidez. Causa-me repulsa ver gente inteligente, crítica, esclarecida, capaz de fazer um questionamento radical dos pilares dessa sociedade ser completamente leviano ao chegar para alguém e dizer algo como: "Acho que você não devia tomar remédio", ou "Acho que seu problema é seu modo de vida", ou qualquer asneira semelhante. Sim, esse é o preconceito que mais me dói, porque é aquele que vem "de dentro", de onde assentei minhas pilastras para erguer a fortaleza de onde resistir aos ataques do mundo e contra-atacar. Portanto, quando parte daí a discriminação, a sensação de isolamento multiplica-se exponencialmente. Uma pessoa deprimida já se sente sozinha, insegura, com dificuldades para fazer a mais simples das coisas. Quando ela procura amparo, encontra questionamentos absurdos por parte daqueles em quem mais confia. Questionamentos sobre sua força, sua capacidade, sua convicção. Isso é de derrubar qualquer um.
Diferente do que muitos acham, a depressão não é uma "doença de rico". Ela é antes um sintoma social, o "mal do século", No século XIX as neuroses, em particular a histeria, eram a cisão no sujeito que mais precisamente e frequentemente expressava a neurose da sociedade. Hoje, é o narcisismo, o encontro do sujeito consigo mesmo e com o outro, a doença fundamental. A alienação do trabalho, o ritmo de vida, as relações utilitárias e pragmáticas, a desestruturação da formação psíquica do sujeito. A depressão expressa o desencontro desse mundo consigo próprio, e essa fratura penetra o sujeito em seu âmago. Há componentes genéticos, hereditários, bioquímicos? Evidentemente. Mas só uma ciência parida em um mundo tão míope e incapaz de olhar para si mesmo seria capaz de reduzir uma doença que, de um século para o outro, torna-se um dos mais graves problemas de saúde de uma humanidade de sete bilhões de pessoas, a fatores da ordem da genética. Afinal, de onde vieram todos esses "genes deprimidos"?
Por outro lado, atestar a causa social da depressão não cura ninguém. E é isso, um pouco de dialética, que falta a muitos marxistas para entenderem a depressão. A expressão no sujeito de um sintoma social se dá na sua constituição mais profunda. Na sua forma de simbolizar o mundo, de apreendê-lo, de colocar-se nele, de ser sujeito e objeto diante dos outros e de si próprio. Por isso que confio na força da psicanálise como um método essencial para a transformação e a cura. Porque é a forma desenvolvida até hoje mais capaz de entender a subjetividade e o psiquismo como fenômenos em desenvolvimento, a partir de sua própria história, e suas leis particulares de desenvolvimento. A dialética entre social e individual na formação de um psiquismo é muito delicada, e não pode ser reduzida a fórmulas políticas, a programas e estratégias, da mesma forma que o desenvolvimento político de uma sociedade não pode ser compreendido meramente por fatores psicológicos dos membros dessa sociedade.
Estamos apenas engatinhando. Na pré-história da humanidade. E nossa mente é a fronteira final. Sim, é temerário tomar um remédio que nem aqueles que o desenvolveram - que dirá os que os receitam - compreendem muito bem como funciona. Por vezes nos sentimos como quem dá uns tapas na televisão querendo que a imagem volte a aparecer. E o trabalho do psiquiatra muitas vezes é assim: torce a antena para um lado, para o outro, muda a televisão de lugar, vai seguindo essa e aquela pista tentando fazer a imagem ficar nítida. Isso tudo, com muita frequência, com seu paciente na mais alta corda bamba, com sua vida praticamente em suspenso, tentando talvez pela última vez, agarrado a um último fio de esperança, encarar a vida com algum gosto antes de decidir que não há saída ou perspectiva de melhora. É uma arte, que muitos executam não como quem lida com o que há de mais belo e delicado, mas sim como soldados obedientes da indústria farmacêutica, repetindo cegamente os mandamentos de seus DSMs, cegos ao desejo vivo e pulsante, agonizante, sofrente, que se coloca em suas mãos. Mas é uma arte que é uma técnica cega, tateando no escuro, praticamente. Por isso que meu psiquiatra, que hoje está se formando como psicanalista, disse que, ao recorrer à psicanálise em sua formação, estava procurando algo "mais fino". A psicanálise quer penetrar esse ser desejante, compreendê-lo, e, acima de tudo, fazê-lo compreender uma pequena ponta desse abismo escuro chamado psiquismo. Mas querer, nessa luta com palavras, prescindir de avanços que os tais remédios, aqueles mesmo que não entendemos bem como funcionam, nos proporcionam, é no mínimo uma imbecilidade. Não estamos brincando quando lidamos com gente doente. Estamos lidando com vidas, com situações-limite. É isso que médicos, terapeutas e palpiteiros de plantão com frequência esquecem ao receitar desleixadamente suas bolinhas ou jogas seus comentários irrefletidos sobre uma pessoa extremamente fragilizada.
Eu não acredito que precise mais de remédios para conseguir enfrentar meu abismo. Mesmo assim, dá um puta frio na barriga. Essa porcaria que não sei por onde age foi uma tábua de salvação no meio de um oceano gelado. Agora, caminho com meus próprios pés, procuro com as palavras ouvir o eco que ressoa ao gritar nessa caverna escura. Como todos nós. Procurando.
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