Outro dia estava em um debate na
Semana de Psicologia da USP; o tema era “machismo, feminismo e psicanálise”. A
psicologia da USP, até onde a conheço, é um terreno não muito amigável para a
psicanálise; como todo o mainstream da
psicologia hoje, ela é hegemonizada pela visão cognitivo-comportamental,
fundada numa concepção antes de tudo biológica do comportamento humano.
Floresce com os modelos de Pavlov, Skinner, que partem do comportamento animal,
do condicionamento e estímulo-resposta para, a partir daí, proporem um
entendimento do humano e seu psiquismo.
Bem, foi nesse ambiente que, após
a apresentação dos palestrantes, um jovem estudante de psicologia fez uma
pergunta que achei muito interessante. Era algo como: o que há de subversivo na
psicanálise? Como ela propõe alguma mudança na visão estabelecida por essa
sociedade patriarcal, machista? Era algo assim. Esse rapaz queria saber o que
na psicanálise propõe a ruptura com o estabelecido. Se ela aceita o mundo como
ele é, ou se ela o desafia. Pergunta difícil.
Pensei sobre isso, sobre o
debate, sobre o lugar dessa teoria na sociedade e na minha vida. Foi bastante
interessante o fato de que, antes da pergunta ser feita, na exposição feita por
duas estudantes do Coletivo Feminista da Psico, elas tivessem levantado, ainda
que procurando não “atacar frontalmente”, a objeção à psicanálise de que ela
tivesse uma compreensão “machista” do psiquismo. Para isso, elas se
fundamentaram em um trecho de Freud de “O caso Dora” em que ele afirma: “Eu
tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade
de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente
desprazerosos”. Me chamou a atenção pois esse trecho também me revirou o
estômago quando o li, e depois me fez pensar bastante.
As meninas estavam certas, mas
também erradas... Sem entrar no mérito dessa colocação específica de Freud, que
precisa ser discutida em seu contexto para se possa compreender o que ela de fato significa
(e as interpretações, obviamente, nem sempre serão convergentes), a primeira
coisa que tenho a dizer, partindo da objeção correta de que Freud carregava em
si um forte ranço do patriarcado, é que nenhuma teoria, por si, garante a “subversão”.
Teorias muito mais subversivas que a psicanálise, como é o caso do marxismo, já
foram, elas mesmas, “subvertidas” para que servissem à domesticação e à
manutenção do status quo. Quantos “marxólogos”
estão hoje tranquilamente em seus gabinetes, escrevendo teses e artigos
perfeitamente inocentes e bem comportados, que em nada subvertem esse mundo
apodrecido. Por isso, o que vou tratar nesse texto não é se a psicanálise é ou
não subversiva, pois isso depende de sua aplicação concreta, da práxis. O que
vou falar é de seu potencial subversivo, tal como o entendo.
A primeira revolução que Freud
fez ao abordar o psiquismo humano – e ele partiu das histéricas internadas nos
hospitais para isso – foi o ato incrivelmente simples e verdadeiramente
subversivo de ouvir. Ele foi aprendendo, aos poucos, a escutar o sofrimento de
suas pacientes. A medicina era (era?) arrogante o suficiente para, ao se
deparar com uma doença sobre a qual não tinha a menor compreensão, achar que
quem estava errado era o doente, e não o conhecimento médico. A histeria era
uma “não-doença”, uma frescura, uma falta de satisfação sexual, uma “coisa de
mulher” no sentido mais pejorativo e misógino que se possa imaginar. A histeria
– uma doenças que atingia sobretudo as mulheres – estava fadada a ser
trancafiada em hospitais e manicômios, e não estudada seriamente para que se
chegasse à sua cura. Isso porque era uma doença à qual podemos encontrar
referências desde o Egito e a Grécia antiga...
Freud bebeu em muitas fontes,
entre as quais podemos destacar Jean-Martin Charcot – o famoso estudioso da
hipnose com quem Freud estudou em Paris e que lhe ajudou a compreender que
havia algo na histeria que remetia ao inconsciente psíquico – e Joseph Breuer,
com quem realizou seus primeiros estudos sobre a histeria e as primeiras
tentativas de cura com o método da sugestão hipnótica. Aí, já havia algo novo:
a tentativa de cura, a escuta, a descoberta do “trauma” por trás da doença. Mas
ainda não era o verdadeiramente subversivo.
Depois, com o aprofundamento dos
estudos e da prática, Freud superou sua teoria da sedução, segundo a qual a
histeria seria desencadeada por um episódio de abuso sexual na infância. Freud
percebeu que havia mais do que uma posição passiva na criança: que ela era um
ser desejante, dotado de sexualidade, entendida aí como a faculdade de querer,
desejar, se identificar com o outro; de mover sua energia psíquica em direção
aos objetos de desejo. A criança fantasiava, e era dotada de sexualidade. Aí se
inaugura o que é, a meu ver, subversivo. Sintomático disso foi o escândalo
causado pela ideia de que crianças fossem dotadas de sexualidade (a ideia de
que crianças são gente, sujeitos).
A psicanálise entende que há algo
inconsciente que nos determina; essas determinações inconscientes são um produto
de nossa história, de nossa experiência, de nossos desejos em contato e em
conflito com o outro; essas experiências se moldam em nossa subjetividade, se
internalizam, dão origem às respostas que aprendemos a ter diante do mundo,
diante dos desejos; o conflito externo é também interno, é motivador e fonte
dos conflitos psíquicos que, uma vez reprimidos, são inconscientes, mas permanecem
atuantes sobre nós. E aí, uma outra subversão da psicanálise em sua época: a
ideia de que não somos seres de pura razão e plenamente conscientes de nossas
motivações e desejos. Um golpe no egocentrismo de uma Belle Époque.
Esses conflitos, por sua
intensidade e irresolução, podem nos levar a adoecimentos. Questões reprimidas
“explodem” em sintomas, uma manifestação distorcida daquilo que pesa em nosso
inconsciente, em nosso desejo. O corpo acaba expressando aquilo com que nosso
consciente não consegue lidar. O processo da psicanálise é a investigação de
nós mesmos pela fala, a procura desses desejos e motivações inconscientes, uma
pesquisa em nós mesmos sobre aquilo que somos, como nos tornamos e que, por
fim, pode nos ajudar a pensar como e o que queremos ser. É um processo de
tomada de consciência das forças psíquicas que agem dentro de nós, e, assim,
uma forma de nos tornarmos mais sujeitos de nós mesmos.
É isso o que é subversivo na
psicanálise. Para deixar isso mais claro, vamos pensar um pouco sobre como esse
mundo nos situa diante dele e entende nossa saúde, nosso adoecimento e nosso
psiquismo. Somos o tempo inteiro sujeitados àquilo que não nos pertence: o
tempo do trabalho, as imposições de uma rotina, de um sistema, de uma vida, na
qual não somos nós que escolhemos. A depressão, o “mal do século”, está ligada
a uma vida em que somos atacados pela cultura do individualismo em um mundo que
paradoxalmente nos impossibilita de sermos sujeitos. Nos tornamos sujeitos pelo
consumo, padronizado, que também é negado à maioria. A alienação é a marca maior,
a solidão é a expressão corriqueira, a vida se torna estranha a nós. A
possibilidade de sermos sujeitos nos é permanentemente negada.
A medicina nos oferece uma
resposta: ela desenvolve medicamentos avançados, poderosos, capazes de
apaziguar as nossas dores. Calmantes para o pânico, a fobia, a angustia e a
insônia. A psicanálise, seu longo e ineficaz “blá blá blá”, que leva meses (ou
anos) para descobrir tortuosamente as origens de um sintoma, é uma coisa do
passado. A psicanálise, diz a “ciência”, é uma coisa para o tempo em que não
sabíamos as determinações bioquímicas, os neurotransmissores que causam as
tristezas e os adoecimentos. Agora, é só repor o seu nível de serotonina, e a
felicidade e a tranquilidade serão suas. A ciência resolveu seus problemas, sem
essa “enrolação” de inconsciente, desejo, traumas, conflitos psíquicos.
A operação ideológica por trás
disso tem suas sutilezas, apesar de seus resultados violentos. Veja bem: seu
sofrimento psíquico não é mais parte de sua constituição como sujeito, de sua
história, de seus desejos e os conflitos que existem no seu psiquismo. As
causas são orgânicas e iguais para todos; as causas são bioquímicas, e não
históricas, subjetivas e sociais. Assim, para todos, um critério único: uma
lista de sintomas, um cardápio de drogas eficientes a serem administradas. A
tão esperada cura está ao alcance de um balcão de farmácia.
Me responderão que esse discurso
que faço é “ideológico”, “romântico”, que ele não analisa objetivamente as
doenças, as pesquisas que demonstram os resultados, os níveis de serotonina
etc. A resposta é que, sim, meu discurso é ideológico, tanto quanto é esse
discurso pretensamente “neutro” e “científico”. Todo conhecimento é ideológico,
e isso parte, em primeiro lugar, da pergunta que fazemos diante do objeto que
indagamos. A pergunta da psiquiatria é: quais as causas bioquímicas do
sofrimento humano? As pesquisas responderão: a baixa taxa de serotonina.
Agora, me diga uma coisa: quem
disse que as baixas taxas de serotonina são a CAUSA e não a CONSEQUÊNCIA da
tristeza? A inversão da pergunta é um tanto ridícula, pois coloca a questão
como “o que vem primeiro, o ovo ou a galinha?”. Além do que, qualquer visão
minimamente dialética saberá que a divisão da lógica formal entre “causas” e “consequências”
puras é um erro metodológico em si; como diz Marx “o concreto é concreto porque
é a síntese de múltiplas determinações”, determinações que se influenciam
reciprocamente. Mas colocar a questão dessa forme serve ao propósito didático
de mostrar o quão ingênua ou de má fé é a metodologia “científica e neutra” dos
que reduziram o sofrimento humano e sua subjetividade a uma secreção hormonal
ou um neurotransmissor.
Foi esse mesmo “método científico
neutro” que criou teorias como as da eugenia, fundadas em “ciências” como a
frenologia, em que, baseado no formato do crânio de uma pessoa, poderíamos
dizer se ela era burra, inteligente, propensa ao crime ou de boa índole etc.
Adivinhem só o que o formato do crânio dos negros sugeriu a esses cientistas
“neutros”? Isso porque a investigação da realidade pressupõe o isolamento de
alguns fatores e a investigação deles como variáveis. Ora, pensemos assim: o
“frenólogo” vai ao presídio e mede o crânio dos criminosos. A partir disso ele
tem os dados: 95% dos criminosos têm o crânio com o formato típico dos negros;
essa conclusão “neutra” lhe diz “cientificamente” quem está propenso a ser
criminoso. Esse método apenas esquece de considerar todo tipo de variável
histórica e social que fez com que os negros fossem 95% dos presos; ela
desconsidera como variável alguns séculos de escravidão e opressão, de racismo
e violência, que encarcera os negros, e não os brancos. A resposta para tudo
está na variável “formato do crânio”, que foi utilizado para determinar as
consequências do comportamento do indivíduo.
Esse exemplo é para pensarmos as
metodologias “modernas” que utiliza a psiquiatria, quando, por exemplo, vê na
TPM e em hormônios femininos a causa de tantos “distúrbios do humor”. Desde
Freud, a maioria das pacientes psiquiátricas eram mulheres; hoje, a depressão,
o pânico e a fobia continuam atingindo sobretudo as mulheres. A psiquiatria
está preparada para levar em consideração a situação social das mulheres, a
opressão milenar do patriarcado, para entender a origem das doenças psíquicas
que acometem as mulheres? Ou para ela basta medir as taxas de serotonina, tal
qual os frenólogos mediam crânios? Assim, não apenas a psicofarmacologia vê em
variáveis como “taxas de serotonina” as “causas” para as doenças, como diversos
outros campos da pesquisa científica incorrem em erros de estupidez notável.
Por isso, é comum vermos dia sim, dia não, uma “descoberta” no jornal sobre o “gene
da genialidade”, o “gene da homossexualidade”, o “gene da longevidade” ou
qualquer baboseira do estilo. Uma tecnologia de ponta, sem um método dialético
de apreensão da realidade, só produz resultados tão míopes quanto esses.
A questão é que as linhas
hegemônicas de psicologia, a cognitivo comportamental, o behaviorismo, a psicofarmacologia,
veem a doença como algo externo ao sujeito que o acomete. O médico ou o
terapeuta, dotados de respostas, tratam o doente para livrá-lo de seu mal. A
pessoa adoecida não é mais sujeito de nada. Sua fobia, seu pânico, sua
ansiedade, sejam qual forem suas origens, serão tratadas da mesma forma, sob os
desígnios das pesquisas e dos remédios adequados. O sofrimento humano é cada
vez mais despersonalizado nessa visão bioquímica.
Um exemplo menor, mas expressivo
dessa concepção, está na definição de luto. Os psiquiatras usam como sua “bíblia”
o DSM, o livro que cataloga todos os transtornos mentais. Em sua quarta edição,
o DSM definia o luto como um “transtorno de adaptação”, o que por si só já é
algo bastante sintomático. É o luto um “transtorno”? De adaptação a que? Ao
ritmo embrutecedor e desumano do trabalho. Ou seja, se morre alguém próximo,
pode ser que a pessoa sofra, mas entendamos que ela está “mal adaptada” à
sociedade e fiquemos alertas para a possibilidade de medicá-la. O DSM cinco,
recém-lançado, reviu sua definição de luto, estabelecendo um prazo: quinze dias
é o “tempo padrão”. O que isso quer dizer? A perda de pessoas ou coisas amadas
passou a causar menos sofrimento psíquico nos últimos vinte anos? Que todos nós
sentimos e sofremos a perda da mesma forma, com a mesma duração e intensidade,
independentemente de nossas características individuais e subjetivas? O que
define esses tempos, se não a necessidade do capital de que as pessoas
produzam, que os gastos com afastamentos de trabalhadores sejam cortados. Deu
quinze dias e o cara não trabalha? Só porque morreu o irmão? Mete
antidepressivo, sobe essa taxa de serotonina, e de volta ao trabalho alienado.
A trata-se, mais uma vez, o sintoma da tristeza persistente: mesmo em algo
evidentemente motivado por uma vivência, não há espaço para a consideração do
sujeito que sofre. As respostas estão prontas, baseadas em prazos, sintomas e
medicamentos pré-estabelecidos.
A psicanálise vem perdendo seu
espaço e sua hegemonia incessantemente desde os anos 1950, quando a
psicofarmacologia descobriu as primeiras drogas eficazes contra a depressão.
Hoje, ela é vista predominantemente como atrasada, incapaz de se atualizar em
relação aos avanços técnicos. Sim, ela é uma forma de compreensão psíquica
estranha a esse tempo. Estranha porque seu método é o do auto-conhecimento, o
de investigar as causas do sofrimento psíquico a partir de entender aquele que
sofre como um sujeito diante de sua dor. Não há prazos certos e nem sequer a
promessa de uma “cura”, termo, aliás, de emprego bastante duvidoso, já que
podemos questionar mesmo os limites entre uma pessoa “doente” e “normal”, e considerando
que o método psicanalítico é igualmente aplicável a ambos os casos. Em um mundo
que não nos quer sujeitos, nunca, mas sim consumidores e bons empregados, a
ideia de que alguém se transforme em sujeito é, sim, talvez mais do que nunca,
subversiva. É certo que a “efetividade” da psicanálise dificilmente será a
mesma de um remédio que mexe com a sua bioquímica cerebral e te bota de pé
pronto pra bater o cartão de ponto. E é certo que essa sociedade está se
lixando para se você resolveu seus conflitos, mas está é preocupada se você é “produtivo”
e “bem adaptado”. Nem sempre a psicanálise irá te tornar uma pessoa mais “bem
adaptada”. E quem disse que é sinal de saúde ser bem adaptado a uma sociedade
doentia?
Mas essa subversão é apenas potencial,
na medida em que a psicanálise e sua forma de enxergar o psiquismo jamais
deixaram de ser restritas a uma pequena elite. As tentativas de torna-la
acessível foram massacradas por um mundo que não permite o acesso de grande
parte da população sequer ao saneamento básico ou a um atendimento de
emergência em um Pronto Socorro. Hoje os que têm acesso a ela são os que, em
geral, podem pagar pequenas fortunas por consulta e, ainda por cima, dispor
desse bem valioso e escasso que no capitalismo pertence aos patrões: tempo.
Tempo de parar, falar, ouvir, refletir. E, é claro, ainda por cima, nada
garante que esse potencial subversivo do método psicanalítico será colocado em
prática; a sua restrição a círculos de elite é castradora para a psicanálise,
que perde em profundidade, em perspectiva, se tornando limitada em seus
objetivos e sua compreensão do mundo. Enquanto seus praticantes forem os
membros de uma classe social que está inserida em uma “bolha” com condições
materiais bem diferentes da maior parte da população, as suas questões estarão
limitadas e restritas a esse universo. Para que ela possa ser subversiva, seus
adeptos terão que tomar como sua uma prática que está muito além da
terapêutica, mas que é a política, a social, a de luta contra uma sociedade que
efetivamente enclausura o psiquismo humano em jaulas que nem o melhor analista
poderá ajudar seus pacientes a romperem.