Minha querida, eu li seu desabafo. Foi cedo que essa dor de
viver chegou em você. E cedo te convenceram que você era uma máquina: sua
química desbalanceada levou você a esse “defeito” de não querer viver, de não
funcionar “normalmente” como as outras pessoas. Pior do que querer a morte, foi
isso de que te convenceram com a autoridade da ciência, o poder dos números e
estatísticas: de que você não é um ser desejante, capaz de ser sujeito; você é
uma máquina programada bioquimicamente para sentir e pensar aquilo que está inscrito
no seu corpo. Sua dor não tem motivos palpáveis, justos, legítimos – ela é o
fruto de um “lapso no cérebro”, como você mesma disse.
Quando você deixa de ser sujeito diante de sua própria vida,
a sua dor se torna algo externo, algo que chega e te arrebata, e contra a qual
você nada pode fazer. Exceto, talvez, tentar balancear sua bioquímica com as
receitas que os especialistas te dão. Os remédios são sujeitos de sua cura, os
médicos são sujeitos de sua cura. Você, não. Você passivamente sofre,
passivamente se medica, passivamente assiste a batalha pela sua vida e sua
morte. Assim, o ato de se matar é “egoísta”; afinal, se sua vida não pertence a
você e, quando você a tira, está tirando algo de outra pessoa. É a esse ponto
que chegou seu desejo. Ele é culpa, ele é vergonha. E a morte passa a ser a
única perspectiva de ser livre.
O primeiro babaca que te receitou os remédios (acredito no
título de babaca que você deu a ele não apenas por confiar em seu julgamento, mas
porque minha experiência confirma a babaquice em alguém que não se dá o papel de
ser mais que um mercador de ilusões e panaceias da indústria farmacêutica),
você disse que ele “se achou muito esperto quando disse que minha depressão
teria algo a ver com o que eu tinha passado”. Pois é, para alguém que se
acostumou a ver o sofrimento e o desejo como um cérebro e um punhado de
neurotransmissores, é realmente uma manobra ousada de esperteza achar que uma
pessoa pode ser influenciada também pela vida. Mas a esperteza dele ficou só no
discurso, porque a prática era a mesma: tome esses remédios e ficará curada. E
o que você passou, que “tinha a ver” com a depressão? Pouco importa, para o
babaca.
Mas é preciso pensar além do que os babacas falam, o que sei
que você é muito capaz de fazer, ainda que seja mais difícil quando se trata de
nós mesmos e, principalmente, no meio desse sofrimento que você está passando.
Há uns cem anos atrás um cara menos babaca do que esse psiquiatra, chamado
Freud, falava de uma coisa que ele chamava de séries complementares: que as
doenças psíquicas não têm uma origem única, simples, de fácil determinação,
como querem os manuais de psiquiatria e os babacas que os leem e reproduzem
como a uma bíblia. Sim, o seu cérebro importa; não, a sua mente não é só um
reflexo da sua bioquímica cerebral. Aquilo que chamamos de fatores inatos ou
hereditários (ou seja, a sua genética, a constituição biológica do seu cérebro
e aquilo que você herdou) têm um peso para saber como será sua formação
psíquica; também têm um peso a experiência, as suas vivências, o que você
passou e como você “digeriu” tudo isso; nisso tem um papel fundamental a
infância e, em particular, a sexualidade infantil. E aí, por cima disso tudo,
tem a causa específica, ou seja, a gota d’água, o acontecimento (seja “concreto”
ou psíquico) que desencadeou o aparecimento da doença. Ele faz emergir tudo
aquilo que estava ali, aquela montanha de pólvora enterrada no seu
inconsciente, esperando uma faísca para explodir. Deve ter sido apenas essa
faísca que o tal babaca viu, achando que sua doença “tinha a ver” com ela. Bom,
pelo menos algo o babaca percebeu.
Mas eu estou dizendo tudo isso pelo seguinte, minha amiga: a
sua doença, o seu sofrimento, não é “causado por nada” e nem alheio ao seu
desejo, à sua história, ao que você pode fazer em relação a ele. A sua vida é
sua, em primeiro lugar. Tome os remédios, mas não porque eles irão resolver o
balanço bioquímico do seu cérebro sobre o qual você não tem nenhum controle e
te impedir de cometer o ato egoísta do suicídio. Tome os remédios porque eles
vão te ajudar agora, nesse momento de extrema dificuldade, e servir como muletas.
Muletas para que, ainda mancando, você possa passar por um processo de análise,
possa investigar sua própria história, a história de seus desejos, as questões
que você reprimiu em seu inconsciente, e, assim, aos poucos, ir sendo capaz de
lidar com tudo isso que fez você adoecer. Tornar-se mais sujeito de tudo que te
atormenta e se fortalecer para, depois, não precisar mais das muletas e andar
com as suas pernas, tendo controle sobre a sua vida.
Não há aqui cura mágica, e as nossas pernas sempre serão bambas,
sujeitas a tropeços e a cair pelo caminho. É para isso que estamos aqui, nós,
as pessoas que te amam. Para te ajudar quando você tropeçar, para te dar um
ombro no qual você possa se escorar de vez em quando, ainda que eles nunca
possam substituir suas pernas (da mesma forma que as muletas dos remédios não
poderão). E, se, um dia, você não aguentar mais essa vida e resolver tirá-la,
não estará cometendo um crime contra ninguém se não contra a sua possibilidade
de viver. A sua vida não pertence à sua mãe, à sua família, aos seus amigos:
ela pertence a você. E é você e mais ninguém que, em última instância, é capaz
de julgar se ainda vale viver ou não.
Fique viva hoje, eu te recomendo, porque você tem tudo a seu
favor para melhorar e viver uma vida plena. As possibilidades estão todas
diante de você. Se não estivessem, e a vida fosse um fardo, jamais insistiria
para que você permanecesse entre nós. Lembre-se, a nossa luta, na qual tenho
orgulho de estar a seu lado, é para isso: que as pessoas possam viver sua vida
plenamente. Quando essa possibilidade se esgota, a luta para que ela permaneça
existindo, em forma vegetativa, não é mais nossa, mas dos padres, dos
moralistas, daqueles que veem a vida como um fardo, um dever, algo que pertence
a “deus” ou à “família”. Daqueles que querem você como uma pessoa “funcional”.
Não é isso que você deve ser. Você deve ser um sujeito, desejante, capaz de
fazer e lutar por aquilo que ama. É nessa caminhada que estarei ao seu lado,
sempre.
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