(texto publicado originalmente no Esquerda Diário)
No ano de 1904 pela primeira vez
se realizou um tratamento psicanalítico fora da cidade de Viena e sem a supervisão
direta de Sigmund Freud, o fundador da ainda jovem psicanálise. O médico a
aplicar o tratamento era Carl Gustav Jung, discípulo de Eugene Bleuler, diretor
da Clínica do Hospital
Burghölzli, ligada à Universidade de Zurique, na Suíça. Sua paciente era a jovem russa Sabina Spielrein.
Foi esse tratamento que levou a que se estabelecesse a relação entre Freud e
seu mais célebre discípulo e posterior dissidente, fundador da psicologia
analítica, Jung. Muito mais se fala desse tratamento, contudo, retratado, por
exemplo, no filme de David Cronenberg, “Um método perigoso”, do que do
impressionante e brilhante destino de sua paciente, Sabina Spielrein. Não deixa
de ser tristemente representativo de nossa sociedade que essa mulher seja
lembrada muito mais pelo fato de ter sido amante de Jung do que pelas
contribuições fundamentais que deu à psicanálise e outras áreas do
conhecimento.
O “esquecimento” de
Sabine Spielrein por cerca de sessenta anos da história da psicanálise, e na
qual ainda não foi reinserida com a justiça devida, não é um mero acaso, mas é
uma expressão bastante nítida de como uma sociedade patriarcal e machista se
manifesta em cada tentativa das mulheres de furar esse cerco. Assim, foi apenas
em 1977, quando o analista junguiano Aldo Carotenuto publicou as cartas
trocadas entre Sabina, Freud e Jung que ela voltou a ser discutida, ainda que o
peso da “anedota” de seu caso amoroso com Jung tenha, mais uma vez, revelado o
peso do patriarcado, deixando a obra de Spielrein em segundo plano.
A “segunda analista”
Sabina não foi a
primeira mulher a penetrar o então restrito círculo dos pioneiros da
psicanálise que se reuniu em torno de Freud. Dois anos após a fundação da
Sociedade Psicanalítica de Viena, ocorrida em 1908 com vinte e dois membros –
todos homens – foi proposto, por iniciativa de Paul Federn, a admissão da
primeira mulher: Margarete Hilferding. Além de uma das primeiras mulheres a se
formar na Faculdade de Medicina de Viena, era militante socialista no Partido
Social-Democrata da Áustria (SPD), junto a seu companheiro, o célebre
economista Rudolf Hilferding, cujo livro “O Capital Financeiro” foi uma das
principais fontes econômicas para “O Imperialismo”, de Lênin. É provável que
não apenas a condição de mulher, mas também a de militante socialista, tenha
pesado para levantar a objeção de Isidor Sadger, membro da sociedade. Freud,
então, declarou que seria uma “grosseira inconsistência” se as mulheres não
pudessem, por princípio, fazer parte da sociedade. Então, precedendo a votação
sobre a adesão específica de Margarete Hilferding, há uma votação sobre se
seriam aceitas mulheres na sociedade: a adesão destas é aceita por onze votos a
favor e três contra.
Finalmente, na
reunião de 27 de abril de 1910 é votada a adesão de Hilferding, após uma
discussão em que as posições expressam uma impressionante misoginia, inclusive
por parte dos que defendem a aceitação de Hilferding. Inclusive o próprio
Freud, defendendo a aceitação da candidata, chega a afirmar que “a mulher nada
ganha em estudar, pois, no conjunto, não melhorará por esse caminho, pois as
mulheres não podem igualar-se aos homens na obtenção da sublimação da
sexualidade”. No entanto, também afirma que na misoginia dos homens há uma
atitude infantil. De acordo com Elisabeth Roudinesco, a opinião de Freud sobre
a menor capacidade de sublimação das mulheres será alterada no futuro. A ata da
reunião é descrita pormenorizadamente por Renata Cromberg em seu excelente
artigo “Primeiras psicanalistas”.
É interessante notar que, apesar de um
posicionamento político francamente conservador, e de posições por vezes
problemáticas sobre o papel das mulheres, Freud tenha defendido enfaticamente a
admissão das mulheres na psicanálise, bem como em outras ocasiões defendido que
essas deveriam ter um papel protagonista para o estudo do psiquismo das
mulheres em questões que ainda considerava não estudadas profundamente. Dessa
vez, a opinião de Freud prevaleceu contra o obscurantismo de alguns de seus
colegas, mas nem sempre foi assim: quanto à admissão de homossexuais, ele teve
seu voto vencido, tendo a IPA (International Psychoanalytical Association)
rejeitado sua admissão como psicanalistas, com uma regra que nunca foi escrita
mas que barrou o acesso de homossexuais à formação psicanalítica por décadas a
partir de 1921. Ainda hoje, a homofobia persiste com força, ainda que não ouse
se proclamar tão abertamente, na maior parte das associações psicanalíticas.
Outra votação em que Freud quase foi derrotado foi em relação a não admitir a
entrada da Sociedade de Psicanálise de Moscou em decorrência do governo
operário russo (da qual Sabina Spierlman foi uma das fundadoras). Essas e
outras propostas reacionárias que contaram com a objeção de Freud eram
consequência da influência de Ernst Jones, um dos grandes responsáveis pela
domesticação da psicanálise para que ela pudesse ter uma convivência “pacífica”
com o regime nazista mesmo após o exílio de Freud em Londres. Em nome da
“neutralidade”, a psicanálise oficialista foi cúmplice de inúmeras outras
violações, como o regime militar no Brasil.
O pioneirismo teórico
Sabina Spielrein inicia seu tratamento com Jung em
1904 com apenas dezoito anos e, após a conclusão, forma-se em medicina. Em 1911
ingressa na Sociedade Psicanalítica de Viena, cerca de um ano após a admissão
de Hielferding. Suas publicações dessa época colocam Sabina na vanguarda de
questões de primeira importância para o desenvolvimento da teoria
psicanalítica.
Na medicina, sua dissertação de conclusão de curso,
intitulada “O conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (dementia
praecox)” foi um dos primeiros trabalhos a relatar minuciosamente a aplicação
da técnica psicanalítica em um caso de esquizofrenia – termo que havia sido
apenas recentemente cunhado por Bleuler para designar o que até então era
conhecido como “demência precoce”. A dissertação abordava o conteúdo do
tratamento de uma paciente e a relação entre sua fala e o conteúdo sexual
reprimido, e, ao lado de trabalhos de Jung, Bleuler e Karl Abraham foi
fundamental para efetivar a psicanálise como uma terapia efetiva em relação aos
pacientes psicóticos.
Em 1912, Spielrein se adianta em nove anos em
relação a Freud ao elaborar o conceito de pulsão de morte ou de destruição, em
seu artigo “A destruição como causa do devir”. É a partir da análise da
esquizofrenia e da neurose, da realização artística e da entrega amorosa, que
ela afirma que o conflito entre as pulsões sexuais de vida e as pulsões de
destruição e de morte fundem-se na criação do devir, do movimento criador.
Ainda nesse mesmo ano, publica “Contribuições para o conhecimento da psique
infantil”, sendo também uma importante desbravadora do terreno da psicanálise
com crianças, bem anteriormente do que a historiografia oficial celebra com
Anna Freud e Melanie Klein, cuja primeira comunicação diante da sociedade
psicanalítica, sete anos depois, seria precedida ainda por dez artigos de
Spielrein sobre a análise de crianças. Esse tema seria central em sua produção,
dando origem a outros artigos como “A origem das palavras infantis mamãe e
papai – sobre o problema da origem e desenvolvimento da linguagem”, de 1920, ou
“Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do afásico e o pensamento
subconsciente”, de 1923. Nesse campo, sua atuação prática também seria
grandiosa, como veremos a seguir em relação à sua atuação na Rússia.
Spielrein também teve
uma importante parceria com Jean Piaget, que fez análise com ela durante oito
meses, seis dias por semana. Juntos, trabalharam com Eduard Claparède no Instituto de Psicologia Experimental e de
Investigação do Desenvolvimento Infantil Jean Jacques Rousseau. Desenvolveram
em conjunto um trabalho sobre as origens do pensamento e da linguagem e uma
teoria da simbolização que, contudo, nunca foi escrita antes que seus caminhos
se separassem.
Levando a psicanálise ao país dos
sovietes
Após a colaboração
com Piaget e Claparéde, Spielrein chegou a residir em Berlim a pedido de Freud,
que julgava sua contribuição ali importante. Contudo, em 1923, Sabina partiria
para a Rússia revolucionária. Ali, por intermédio de Trotski, que sempre
defendera o incentivo e a plena liberdade para o desenvolvimento das
investigações psicanalíticas, Spielrein seria muito bem recebida pelo governo
operário. Foi convidada por Vera Schmidt a dirigir a clínica psicanalítica para
crianças que aquela havia fundado, bem como a inédita experiência do jardim da
infância psicanalítico (mais conhecido pelo nome oficial de Lar Experimental
para Crianças ou Casa Branca), ambos construídos sob o incentivo do governo
soviético, que, mesmo em meio à imensa miséria gerada pela sucessão de duas
guerras e do poderoso ataque imperialista à revolução de outubro, encontrou
recursos para fomentar essas fascinantes iniciativas. Spielrein também assumiu
a chefia do departamento de pedologia (uma ciência soviética que estudava o
desenvolvimento da infância, mais um exemplo de como as crianças tinham o
primeiro plano nas prioridades do Estado operário) na Universidade de Moscou.
Fundou então, junto a Dimitrievitch Ermakov e Moshe
Wulff, a Sociedade Psicanalítica na Rússia, que chegou a ser a mais numerosa de
sua época. Sem dúvida, não se poderia ver como simples “coincidência” esse
impressionante florescimento da psicanálise na Rússia, justamente no período
revolucionário em que houve um maravilhoso desenvolvimento das artes e ciências
no rastro da revolução, enquanto na Europa a psicanálise se encontrava cada vez
mais estrangulada pelo ascenso do nazi-fascismo que, quando não procurou
destruir diretamente a teoria psicanalítica, como com as fogueiras de livros na
Alemanha, acabou por “domesticar” a psicanálise, o que gerou seus efeitos
devastadores na IPA (Associação Internacional de Psicanálise) sob o comando de
Ernst Jones e a conivência de Freud, que mesmo tendo sido obrigado ao exílio em
Londres, desejava que a psicanálise mantivesse a posição de “neutralidade” para
que pudesse sobreviver em meio ao acirramento bélico que começava a se gestar.
O período de glória da psicanálise na Rússia
soviética duraria mais alguns anos, durante os quais Spielrein desenvolveu uma
intensa atividade, atuando como analista didata, proferindo seminários e conferências,
e emergindo como um verdadeiro pólo de atração de novos cientistas e analistas.
Ocupou nesse período três cargos: o já mencionado na cátedra de Pedologia da
Primeira Universidade de Moscou; o de consultora médica pedagógica da Terceira
Internacional em uma vila de crianças (mais uma experiência social fruto da
revolução, muito bem descritas no livro “Mulher, Estado e Revolução” da
historiadora Wendy Goldman); e, finalmente, como colaboradora científica no
instituto psicanalítico estatal (provavelmente o único instituto público a
financiar a psicanálise no mundo nessa época). Sua influência nessa época foi
decisiva para nomes como Vygotsky, Leontiev e Luria, três dos mais importantes
pioneiros da psicologia soviética.
No entanto, o estrangulamento da revolução nas mãos
do estalinismo significou também o fim das possibilidades de desenvolvimento da
psicanálise na URSS. Considerada como uma “ciência burguesa” e coberta de injúrias
pelo pensamento burocrático e castrador da camarilha que expropriou o poder dos
sovietes e da classe operária, a psicanálise foi rapidamente sendo extirpada da
União Soviética. Emblematicamente, a Sociedade Psicanalítica Russa foi
dissolvida em novembro de 1929, o mesmo mês em que era exilado o dirigente
revolucionário Leon Trotski, que havia sido e permaneceria sendo o mais
fervoroso combatente pelo legado revolucionário russo, e também quem havia
lutado para que a psicanálise tivesse todo o espaço e os recursos necessários
para se desenvolver no país dos sovietes. Então, Sabina retornou à sua cidade
natal, Rostov sobre o Don. Em 1936, a psicanálise é oficialmente proibida pelo
estalinismo. Diante disso, Sabina retornou à música, à qual já havia se dedicado
profissionalmente entre 1913 e 1918, e pela qual era apaixonada. A partir de
1929 foi proibida de deixar a Rússia; em 1937, seus irmãos são deportados aos
Gulags; em 1942, durante a ocupação nazista, Sabina e suas duas filhas foram
assassinadas pelas tropas de ocupação.
Assim, com apenas 56 anos, Sabina Spielrein morreu.
Sua vida foi testemunho de uma mulher que superou o peso colossal de uma
sociedade patriarcal, vencendo a patologia psíquica que lhe afligiu, a
discriminação, contribuindo para o entendimento da mente humana e sendo uma
pioneira na investigação. É também um testemunho valioso da grandiosa
contribuição que a revolução socialista pode dar para o desenvolvimento do
conhecimento humano no sentido da emancipação, bem como do poder castrador da
burocratização de um processo revolucionário em curso.
Referências:
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