sábado, 21 de fevereiro de 2015

Disforia: Bonecas Matrioshkas Ou Fita De Möbius?

Por Bia Bagagli, publicado originalmente em Transfeminismo



Ontem sofri disforia. Passei parte da noite, antes de dormir, chorando. Me senti fraca. Mas eu me interrogava: isso é tristeza? As pessoas choram se estão tristes, este é o sentido normal. No entanto, é possível chorar por indignação, revolta? Não se trata propriamente de um estado “deprimido”. Não sinto a vida rebaixada, desprezível. Esta tristeza é outra, fruto da indignação frente às injustiças e o anseio à transformação social. Este texto é fruto desta inquietação.
A disforia que senti era de natureza “exterior”. Não essencialmente exterior, mas enquanto efeito. Ela se mostrava a mim enquanto externa a meu corpo. Ela se orientava ao externo, ao corpo social. Cabe aqui uma explicação pelo o que eu entendo por disforia interna e externa. E pelas próprias categorias de interior e exterior. Para tanto, as metáforas das bonecas Matrioshkas e a fita de Möbius são precisas para entendermos a relação – que proponho paradoxal, dada a escolha pela fita em detrimento das bonecas – entre o indivíduo (interno) e social (externo) no que tange à discussão da disforia (sofrimento do indivíduo) e da transfobia (“sofrimento do social”).
Minha indignação que me referi acima se deu em relação ao discurso psiquiátrico e psicológico que concebe discursivamente a transexualidade. Quando chorava, entendia que o discurso psiquiátrico e mesmo o psicológico causavam – ao invés de pretensamente aliviar ou curar – a disforia externa, social. Tanto um quanto o outro discurso pressupõe a existência do indivíduo. Este individuo, de acordo com a perspectiva psicologista, comum ao discurso da psiquiatria e da psicologia, pressupõe um “núcleo duro” interno – sua subjetividade, suas identidades, suas doenças, suas disforias, etc – e um exterior social. Nesta perspectiva o interior (subjetivo) não se confunde com o exterior (social), ao mesmo tempo em que um pressupõe a existência do outro. É neste modelo que tem se concebido a disforia e o atendimento à saúde (mental/física) às pessoas trans*.
O sofrimento do indivíduo é a disforia e o sofrimento do social é a transfobia. O discurso terapêutico julga poder atuar no sofrimento individual, enquanto o sofrimento do social seria incumbência de militantes. A questão, como veremos, não pode ser tão simples. E quando o exterior e o interior se amalgamam? E quando o “pessoal é político”, enunciado esse que reverberou tanto pelo discurso feminista? É neste ponto paradoxal em que o interno é e não é ao mesmo tempo o externo que é possível ver os pontos de falha e rachadura do psicologismo.
Cabe apontar as diferenças entre o discurso psiquiátrico e o psicológico. Ambos caem no perigo do psicologismo. Ambos se baseiam nas bonecas Matrioshkas. Estas bonecas são constituídas em série, na qual uma se encaixa dentro da outra. Aqui temos três bonecas: a central é a biológica, a intermediária é a psicológica e a externa é a social. Aqui temos o clássico sujeito biopsicossocial nos seus efeitos mais aparentes. Cada boneca pressupõe o exterior da outra, de forma com que o biológico, o psicológico e o social se comunicarem em suas ordens distintas. Se somarmos estes três vetores de forma positiva faríamos uma ciência positiva da psique humana. Cada ordem distinta estabeleceria uma relação de determinação transparente com a outra, ao mesmo tempo em que uma é exterior à outra. O que separa uma boneca da outra garante a estabilidade das distintas ordens do real. O terapeuta poderia atuar na boneca biológica (psiquiatria) ou psicológica (psicologia) sem atuar diretamente na boneca social (como disse, seria assunto para militantes), mesmo pressupondo em certo sentido a sua existência. O paradoxo da relação entre o indivíduo e o social tenta ser apagado por uma higienização pedagógica do pensamento. É isso que o psicologismo propõe. As bonecas propõem uma classificação do mundo através de uma narrativa coerente e coesa – e não paradoxal e contraditória. O corpo (disfórico) aqui acaba emergindo deste discurso enquanto necessitado de uma coesão. O problema é quando o não-todo do gênero emerge como sem-sentido. O que fazer com identidades transgêneras – tidas como patológicas – que escapam à coerência ciscentrada da transexualidade (a travestilidade)?
boneca russa
Esta higienização do pensamento visa uma operação de inclusão e exclusão da categoria do social, e com isso, do político. Podemos observar os traços deixados por essa denegação. O principal erro do psicologismo é pretender tratar “problemas” que seriam estritamente individuais se apartando do problema social. Mesmo que o psiquiatra ou o psicólogo “entendam” que a transfobia gera sofrimento psíquico, o discurso psicológico e psiquiátrico funcionam através da disjunção entre o que seria da ordem interna (disforia individual, ligada ao corpo) da ordem externa (“sofrimento do social”, opressão transfóbica). A forma como entendemos a relação interior/exterior é crucial para a questão transgênera. Agora, vou voltar ainda para as diferenças que me referi vagamente acima entre psiquiatria e psicologia. A psiquiatria tem uma ojeriza completa pelo social. Neste sentido, é mais visivelmente cissexista. A psiquiatria parte da boneca biológica para entender a psicológica, podendo quase que ignorar completamente a boneca social. Neste funcionamento, o biológico é tido como pressuposto e causa do psíquico. Já no discurso da psicologia, o funcionamento das três bonecas é um tanto mais complexo, já que a psicologia (ou certos discursos da psicologia) tem uma forte preocupação com o social. Porém, em última instância, a psicologia trabalha com as bonecas, e as divisões que ela pressupõe.
O trabalho entre bonecas pelo discurso da psicologia tem lá seus pontos de contradição e equívoco. Afinal, não há encaixe perfeito de uma boneca à outra, podendo ser possível observar os furos entre elas. Hailey observou perspicazmente em seu texto “Sobre a nota do CFP: Patologização das identidades trans* e compulsoriedade da psicoterapia no processo transexualizador”. Em seu texto, vemos que ao mesmo tempo em que há um “comprometimento com o social” em despatologizar as identidades trans*, a psicologia demonstra seu ponto de limite (ou mesmo um ponto cego), que diz respeito justamente aos núcleos duros do indivíduo biopsicológico que ela não quer abrir mão. Haveria, por mais que se reconheça a importância da despatologização – e com isso, o reconhecimento dos indivíduos transgêneros enquanto sujeitos, e não objetos afetados por uma patologia às suas próprias revelias – a contradição de não ir a fundo nesta empreitada, já que, em última instância, um psicólogo poderia distinguir as subjetividades corretamente patológicas das patológicas sem-sentido. Aqui impera em última instância a necessidade de coerência sobre o corpo disfórico. Coerência esta pautada pela norma cisgênera. Eis o mito da transexualidade em seus efeitos.
Com “corretamente patológica” quero dizer que o discurso psicológico julga, em última instância, poder dizer quem está apto ou não a receber o tratamento que deseja. A revelia do sujeito transgênero, desconsiderando, em última instância, sua narrativa pessoal do gênero. Já a psiquiatria, como disse, é escancaradamente julgadora: é logo em primeira instância que um psiquiatra vai julgar quem é legitimamente transgênero (transexual). Entre a última e a primeira instância: eis o que diferencia a psiquiatria da psicologia. A transexualidade é construção pelo discurso psicologista de uma patologia com sentido e a travestilidade uma patologia sem sentido.
Para quem não conhece, ir a um psiquiatra sendo trans* é passeio nada agradável. Em primeira instância ele irá te separar da patologia com ou sem sentido. Para tanto, somos interpeladas com perguntas bastante “diretas”, tais como “você se masturba?”, “como faz isso?”, “sente prazer?”, “o que pensa quando se masturba”, etc; até perguntas ainda mais grosseiras, como se usamos calcinha (!) ou qual animal gostaríamos de ser (veja aí a capciosidade de gênero da pergunta), dentre diversas outras que só a mais incrível criatividade psiquiátrica poderia conceber. E passamos por estes profissionais não por mero prazer sádico. A cidadania para pessoas transgêneras no Brasil exige a figura do laudo psiquiátrico. Precisamos dizer se e como masturbamos para sermos cidadãs e cidadãos. Não conheço forma, ao mesmo tempo, mais sutil e escancarada de objetificação e genitalização que esta.
E quando não nos reconhecemos nos sentidos que disjungem a transexualidade e a travestilidade? E quando somos travestis e estamos excluídas do sistema simbólico que significa a patologia com sentido?
Da minha posição, para resolver esse imbróglio precisamos repensar drasticamente as categorias de interior e exterior, como referi acima. Para isso é necessário pensar através da metáfora da fita de Möbius. Uma fita de Möbius possui apenas um lado e uma borda. Nela, não existe, portanto, lado interno e externo, dentro ou fora. Diferente das bonecas, em que existe, além de uma borda estanque entre o que está fora ou dentro, uma hierarquia entre o núcleo e a periferia. Pensar na fita irá nos afastar de qualquer possibilidade de demarcação estanque da ordem do biológico/psicológico (individual) e sociológico, assim como qualquer forma de hierarquia entre elas. Passamos a compreender a ligação do indivíduo ao social como um continuum paradoxal. O individual é ao mesmo tempo em que não é o social, e vice-versa. Assim, podemos compreender o continuum da disforia à transfobia enquanto sofrimento que vai do corpo individual ao corpo social.
fita mobius
Aqui vai a minha proposta para se pensar a disforia: ela diz respeito ao corpo do indivíduo e ao corpo social. Pensá-la através do paradoxo do que é ao mesmo tempo uno e plural, coeso e cindido. Esta ruptura se faz em relação à psicologia e a psiquiatria rumo à psicanálise. Na psicanálise não há núcleo duro e coeso do indivíduo em contraposição ao núcleo mole e contraditório do social. Há tão somente continuísmo paradoxal. O meu discurso é o discurso do Outro. Com isso vejo a psicanálise como espaço de resistência ao discurso do sujeito centrado no indivíduo. O que não significa dizer que a psicanálise está isenta a priori de reproduzir discursos machistas, cissexistas ou, para ser mais específica, falogocêntricos. O que acho possível e necessário é pensar o sujeito do transfeminismo através das contribuições da psicanálise. Neste processo há uma apropriação da psicanálise pelo transfeminismo, possibilitando deslocamentos e espaços novos de significar a relação sujeito-sociedade. Sofrimento psíquico que não se opõe ao sofrimento social, visto que se trata de manifestações, em ordens distintas, do mesmo processo.
Com isso quero sair de outras formas de oposição, como se – partindo da acepção da determinação social da disforia – ela se resumisse ao social, em uma espécie de efeito-consequência mecanicista. Assim estaríamos condenados a pensar em dois modelos estanques, um que compreenderia a disforia como determinismo biológico (e portanto, com sua forte independência em relação ao social) e outra como puro efeito social. Ao contrário, quero partir de uma concepção do social enquanto relação necessária ao sujeito e não enquanto camada que se tira e põe (como uma boneca Matrioshka). Falo a partir do social para o social, e não apesar e fora dele. Não quero estar fora do social. Não quero ser um conjunto de bonecas cujo núcleo duro seja uma boneca biológica. O efeito social não é algo dado a priori, isento de contradição. Prefiro pensar enquanto assujeitamento ideológico. Não há possibilidade de sairmos da ideologia, toda forma de ação social se dá através de sua mediação. O que inclui o pessoal, o subjetivo. Esta relação não é transparente para mim e para todos. Há algo se imprevisível (mesmo misterioso) neste assujeitamento, já que o nosso movimento (o Mesmo) se dá na relação com o Outro, que o desestabiliza constantemente. O social não é acréscimo de uma camada transparente e positiva fruto de uma dinâmica intersubjetiva que vise o consensual.
Há divisão e conflito no “homem”, o marxismo aponta. O feminismo nos aponta para a divisão (de gênero) e o conflito do sistema patriarcal (machismo). O transfeminismo me mostra outra série real de conflitos. Há conflito e contradição toda vez que somos relegadas a subcidadania pelo cistema e somos divididas entre patologias com e ou sem sentido. Precisamos sair da patologia. Lutar contra a patologização do gênero e tirarmos da posição infantilizante de sujeitos sem agência que seriam determinados pela doença da transexualidade. Pensar o impensado da patologia de gênero (travestilidade) irá nos ajudar a desconstruí-la. Há conflito e divisão no Mesmo e no Outro. Pensar resistências partindo deste princípio significa dar suma importância para a categoria de contradição. Explorar a contradição do discurso da psiquiatria e da psicologia. Repensar o continuísmo espontâneo indivíduo e sociedade. Disforia e transfobia; dentro e fora. Sujeitos antes tidos como patológicos e sem sentidos insurgindo do não sentido para a potência política do gênero: devir travesti.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Tateando no escuro


Dentro de duas semanas eu não tomarei mais antidepressivos. O que tomo atualmente, Pristiq, me acompanha há cerca de quatro anos. Comecei a tomá-lo depois de minha última recaída relativamente séria, após iniciar meu trabalho como professor de português no Ensino Médio da rede pública do estado de São Paulo. Nesse emprego, as doenças psíquicas são uma verdadeira epidemia, assolando os professores como algo quase corriqueiro, esperado.

Mas, por mais que a situação de calamidade completa da educação pública faça da escola um verdadeiro "caldo de cultura" para as doenças mentais, estou longe de querer reivindicar sua exclusividade para os professores. A categoria na qual trabalho hoje, os metroviários, também são um público muito acometido por esse tipo de mal. Meu pai e meu irmão, psiquiatras que por anos (ou décadas, no caso do meu pai) atenderam o convênio do metrô, sabem muito bem disso. Horários de trabalho caóticos, que numa mesma semana podem variar entre manhã, tarde e madrugada; operadores de trem que passam por situações de atropelamento; assédio moral,,, enfim, motivos não faltam também aos metroviários para adoecerem, e muito, somando esse tipo de doenças às inúmeras lesões físicas por esforço repetitivo que podem ser encontrada em cada estação de São Paulo. Serão os metroviários e professsores, então, gente especialmente vulnerável às doenças mentais? Não. Bancários, operários de fábrica (como o excelente documentário "Carne Osso" mostra em relação aos frigoríficos), trabalhadores do telemarketing, aeroviários, motoristas de ônibus... nomeie uma emprego, estude ele a fundo e você descobrirá como, certamente, além de destruir o corpo dos trabalhadores, esse trabalho corrói sua mente. Adoece, em todos os planos. É assim o trabalho no capitalismo. E, tragicamente, ainda persiste em ampla escala, mesmo entre a esquerda revolucionária, o bruto preconceito de que a depressão é "doença de rico". Nem sempre dessa forma tão crua; às vezes são "problemas ideológicos", "falta de convicção política", "falta de conviver com a classe trabalhadora"...

Então, passamos do problema um (a epidemia social das doenças psíquicas, com destaque acentuado para a depressão), para o problema dois: o profundo preconceito e estigma social que sofrem as pessoas vítimas desse mal em virtualmente todos os ambientes de nossa sociedade, inclusive os mais progressistas e questionadores. Eu, talvez por minha criação muito próxima do estudo desse mal, nunca me abalei com o preconceito alheio. Mas por isso mesmo sempre me encheu de fúria, e ainda enche, quando me deparo com o preconceito. Claro que ele é quase sempre fruto da incompreensão, mas a essa muitas vezes se soma a má fé, o dogmatismo, a estupidez. Causa-me repulsa ver gente inteligente, crítica, esclarecida, capaz de fazer um questionamento radical dos pilares dessa sociedade ser completamente leviano ao chegar para alguém e dizer algo como: "Acho que você não devia tomar remédio", ou "Acho que seu problema é seu modo de vida", ou qualquer asneira semelhante. Sim, esse é o preconceito que mais me dói, porque é aquele que vem "de dentro", de onde assentei minhas pilastras para erguer a fortaleza de onde resistir aos ataques do mundo e contra-atacar. Portanto, quando parte daí a discriminação, a sensação de isolamento multiplica-se exponencialmente. Uma pessoa deprimida já se sente sozinha, insegura, com dificuldades para fazer a mais simples das coisas. Quando ela procura amparo, encontra questionamentos absurdos por parte daqueles em quem mais confia. Questionamentos sobre sua força, sua capacidade, sua convicção. Isso é de derrubar qualquer um.

Diferente do que muitos acham, a depressão não é uma "doença de rico". Ela é antes um sintoma social, o "mal do século", No século XIX as neuroses, em particular a histeria, eram a cisão no sujeito que mais precisamente e frequentemente expressava a neurose da sociedade. Hoje, é o narcisismo, o encontro do sujeito consigo mesmo e com o outro, a doença fundamental. A alienação do trabalho, o ritmo de vida, as relações utilitárias e pragmáticas, a desestruturação da formação psíquica do sujeito. A depressão expressa o desencontro desse mundo consigo próprio, e essa fratura penetra o sujeito em seu âmago. Há componentes genéticos, hereditários, bioquímicos? Evidentemente. Mas só uma ciência parida em um mundo tão míope e incapaz de olhar para si mesmo seria capaz de reduzir uma doença que, de um século para o outro, torna-se um dos mais graves problemas de saúde de uma humanidade de sete bilhões de pessoas, a fatores da ordem da genética. Afinal, de onde vieram todos esses "genes deprimidos"?

Por outro lado, atestar a causa social da depressão não cura ninguém. E é isso, um pouco de dialética, que falta a muitos marxistas para entenderem a depressão. A expressão no sujeito de um sintoma social se dá na sua constituição mais profunda. Na sua forma de simbolizar o mundo, de apreendê-lo, de colocar-se nele, de ser sujeito e objeto diante dos outros e de si próprio. Por isso que confio na força da psicanálise como um método essencial para a transformação e a cura. Porque é a forma desenvolvida até hoje mais capaz de entender a subjetividade e o psiquismo como fenômenos em desenvolvimento, a partir de sua própria história, e suas leis particulares de desenvolvimento. A dialética entre social e individual na formação de um psiquismo é muito delicada, e não pode ser reduzida a fórmulas políticas, a programas e estratégias, da mesma forma que o desenvolvimento político de uma sociedade não pode ser compreendido meramente por fatores psicológicos dos membros dessa sociedade.

Estamos apenas engatinhando. Na pré-história da humanidade. E nossa mente é a fronteira final. Sim, é temerário tomar um remédio que nem aqueles que o desenvolveram - que dirá os que os receitam - compreendem muito bem como funciona. Por vezes nos sentimos como quem dá uns tapas na televisão querendo que a imagem volte a aparecer. E o trabalho do psiquiatra muitas vezes é assim: torce a antena para um lado, para o outro, muda a televisão de lugar, vai seguindo essa e aquela pista tentando fazer a imagem ficar nítida. Isso tudo, com muita frequência, com seu paciente na mais alta corda bamba, com sua vida praticamente em suspenso, tentando talvez pela última vez, agarrado a um último fio de esperança, encarar a vida com algum gosto antes de decidir que não há saída ou perspectiva de melhora. É uma arte, que muitos executam não como quem lida com o que há de mais belo e delicado, mas sim como soldados obedientes da indústria farmacêutica, repetindo cegamente os mandamentos de seus DSMs, cegos ao desejo vivo e pulsante, agonizante, sofrente, que se coloca em suas mãos. Mas é uma arte que é uma técnica cega, tateando no escuro, praticamente. Por isso que meu psiquiatra, que hoje está se formando como psicanalista, disse que, ao recorrer à psicanálise em sua formação, estava procurando algo "mais fino". A psicanálise quer penetrar esse ser desejante, compreendê-lo, e, acima de tudo, fazê-lo compreender uma pequena ponta desse abismo escuro chamado psiquismo. Mas querer, nessa luta com palavras, prescindir de avanços que os tais remédios, aqueles mesmo que não entendemos bem como funcionam, nos proporcionam, é no mínimo uma imbecilidade. Não estamos brincando quando lidamos com gente doente. Estamos lidando com vidas, com situações-limite. É isso que médicos, terapeutas e palpiteiros de plantão com frequência esquecem ao receitar desleixadamente suas bolinhas ou jogas seus comentários irrefletidos sobre uma pessoa extremamente fragilizada.

Eu não acredito que precise mais de remédios para conseguir enfrentar meu abismo. Mesmo assim, dá um puta frio na barriga. Essa porcaria que não sei por onde age foi uma tábua de salvação no meio de um oceano gelado. Agora, caminho com meus próprios pés, procuro com as palavras ouvir o eco que ressoa ao gritar nessa caverna escura. Como todos nós. Procurando.