domingo, 28 de junho de 2020

Orgulho LGBT: Em 1935, Freud já dizia que a homossexualidade não era “doença” e não devia ser “curada”

Trazemos aqui uma carta de 1935, escrita por Sigmund Freud, pai da psicanálise – e, portanto, da psicologia moderna – em resposta à carta de uma mãe que apela à ajuda da análise para que seu filho seja “curado”. Reproduzimos abaixo a carta na íntegra, seguida de um breve comentário:

9 de abril de 1935

Professor Dr. Freud

Cara Senhoa [NOME APAGADO]

Eu posso deduzir a partir de sua carta que seu filho é homossexual. Me impressiona muito o fato de que você mesma não mencione esse termo em seu relato sobre ele. Poderia perguntar por que o evita? A homossexualidade seguramente não é uma vantagem, mas não é nada de que se deva ter vergonha, nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como uma doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual produzida por uma certa interrupção do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis da antiguidade e dos tempos modernos foram homossexuais, alguns dos maiores homens entre eles (Platão. Michelangelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime e uma crueldade também. Se você não acredita em mim, leia os livros de Havelock Ellis.

Ao me perguntar se eu posso ajudar você quer saber, eu suponho, se eu posso abolir a homossexualidade e fazer com que a heterossexualidade normal tome seu lugar. A resposta é, de um modo geral, que não podemos prometer alcançar isso. Em um certo número de casos somos bem sucedidos em desenvolver os embriões frustrados de tendências heterossexuais, que estão presentes em todo homossexual; na maior parte dos casos não é mais possível. É uma questão de como é e que idade tem o indivíduo. O resultado do tratamento não pode ser previsto.

O que a análise pode fazer por seu filho está em outro caminho. Se ele está infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer a ele harmonia, paz de espírito, plena eficiência, permaneça ele um homossexual ou não. Se você decidir que ele deva se analisar comigo – o que não espero que você faça – ele deve vir a Viena. Eu não tenho intenção de sair daqui. Contudo, não me negligencie sua resposta.

Sinceramente, com os melhores votos,

Freud.

P.S. Eu não encontrei dificuldade em compreender sua caligrafia. Espero que você não ache minha letra e meu inglês uma tarefa mais difícil.


fac-símile da carta de Freud. (a carta foi traduzida da versão original em inglês que pode ser lida aqui.

A carta foi tornada pública ao ser enviada anonimamente ao sexólogo americano Alfred Charles Kinsey em dezembro de 1949, acompanhada do seguinte bilhete:

“Caro Dr. Kinsey: envio aqui uma carta de um Grandioso e Bom homem que você pode guardar. De uma mãe agradecida.”

Não é possível aqui desenvolver toda a posição de Freud sobre a homossexualidade (pode-se ler um pouquinho mais aqui), e por essa carta podemos perceber já que há muitas concepções que estão francamente equivocadas (o que é de se esperar, considerando que a carta foi escrita em 1935).

Contudo, cabe destacar que há quase cem anos Freud já rejeitava como absurda a noção de que a homossexualidade fosse uma doença ou que merecesse algum tipo de “tratamento” ou “cura”. Pelo contrário, Freud enfrentou grande parte das ideias hegemônicas sobre a sexualidade vigentes na popular pseudo-ciência da “sexologia” do século XIX, e foi por isso duramente criticado.

Naquele período, os sexólgos classificavam os homossexuais, bem como todos os que tivesse um comportamento sexual “desviante” da norma heterossexual, monogâmica e de acordo com os preceitos morais burgueses da época como uma vítima de uma “degeneração” que os levava a tais comportamentos. Freud, em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, não apenas combateu energicamente essa noção, mas ainda enfiou o dedo na ferida mais a fundo: é nesse texto que estão desenvolvidas pela primeira vez suas concepções fundamentais de que as crianças possuem sexualidade desde a mais tenra idade (ideia que gerava arroubos de ira aos moralistas e puritanos da época, bem como certamente a certos “psicólogos” e moralistas como MBL, Bolsonaros, defensores do Escola Sem Partido de hoje).

Além disso, Freud afirmava que todas as crianças possuem uma sexualidade “perversa polimorfa”, ou seja, que estão disponíveis e abertas para todas as formas de sexualidade, e que é o desenvolvimento psíquico posterior (o atravessamento do chamado “Complexo de Édipo”, como Freud desenvolveria depois) que leva à interdição de certas vias de satisfação sexual e à condução à heterossexualidade. Assim, Freud é o primeiro e demonstrar que a bissexualidade seria efetivamente a forma “inata” da sexualidade humana. O que lhe cabe de conservador e se mostra no texto – e que caberá ao desenvolvimento posterior da psicanálise resolver – é a noção de que há um desenvolvimento “normal” da sexualidade, e que as demais formas seriam algum tipo de interrupção ou fixação em determinado estágio do desenvolvimento.

Contudo, em nenhum momento, como fica claro na própria carta, isso leva Freud a considerar que a homossexualidade seria uma “degeneração”, “doença” ou que em qualquer forma necessitária de cura. Nisso, aliás, ele estava acompanhado por outros nomes importantes do estudo da sexualidade em sua época, como o citado Havelock Ellis ou Magnus Hirschfield. Tal concepção de Freud, evidentemente, poderia ser ampliada para as questões da identidade de gênero, que ainda hoje sofrem a patologização por parte da medicina. Vale lembrar que apenas em 1990 a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar a homossexualidade como um “transtorno psíquico”, como fazem ainda hoje com as identidades trans.

Em tempos sombrios que o judiciário e seu poder arbitrário cumprem o nefasto papel de impor tamanho retrocesso ao permitir que psicólogos queiram “reeducar” a sexualidade de seus pacientes, abrindo a porta para abusos imensos contra a população LGBT, é fundamental mostrarmos que não há absolutamente nada no campo do conhecimento psicológico que corrobore essas atitudes monstruosas. E que o que cabe aos psicólogos é lutar pela plena liberdade de todos, combatendo qualquer tipo de restrição, de criminalização ou de "doutrinação psíquica".

A fraude da psicofarmacologia (parte 2)

créditos da foto: iStock/Getty Images 

Continuação de A fraude da psicofarmacologia (parte 1)

A “explicação científica” da psiquiatria biológica

Não desenvolveremos aqui uma crítica mais profunda ao modelo científico por trás da “revolução psicofarmacológica”, o que pretendemos fazer em um próximo artigo, mas apenas exporemos a própria hipótese da chamada “psiquiatria biológica” e algumas das principais evidências de sua falência completa. Como dissemos, as drogas precederam a teoria. Mas, em meio ao boom de vendas dos remédios, alguns cientistas procuraram encontrar algum fundamento científico que justificasse tamanho sucesso comercial (inclusive porque isso fortaleceria sua propaganda). Surgiu aí a teoria do desequilíbrio químico do cérebro. Em um cérebro que constitui um órgão humano de uma complexidade inacreditável, se aventou, a partir da medição da quantidade de neurotransmissores como a dopamina e a serotonina, que aí residisse a causa das doenças mentais. Como afirmou o próprio Joseph Schildkraut, em 1965, num dos primeiros artigos que sintetiza a teoria dos desequilíbrios químicos, essa hipótese era “se tanto, uma supersimplificação reducionista de um estado biológico muito complexo” (1).

O desenvolvimento desse reducionismo afirmou que os pacientes deprimidos sofriam de uma falta de serotonina, enquanto a esquizofrenia era uma decorrência do excesso de dopamina, para simplificar. Whitaker relata diversos estudos: o de 1969 feito por Malcolm Bowers relata que níveis de serotonina mais baixos em oito pacientes deprimidos (todos já expostos a medicação) não eram significativamente mais baixos; ele realiza um estudo mais aprimorado em 1974 e chega à conclusão de que os níveis eram normais em pessoas deprimidas. Em 1971, outro estudo afirma que a diferença dos níveis de serotonina entre deprimidos e grupo de controle não era “estatisticamente significativa”. Em 1974, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia reviram a literatura utilizada por Schildkraut para levantar a hipótese do desenvolvimento da depressão a partir da inibição das monoaminas cerebrais (serotonina, dopamina e norepinefrina) e concluíram que os dados utilizados não permitiam corroborar teoria (2).

E, apesar das evidências todas contrárias à teoria do desequilíbrio químico, a “verdade” que corroborava o lucro farmacêutico precisava vencer: assim, em 1975, um novo estudo de Marie Asberg novamente procurou “provar” a hipótese serotoninérgica. 20 do 68 pacientes estudados sofriam baixos níveis de serotonina (29%). Além disso, de acordo com o estudo, esses 20 seriam “mais suicidas” do que os outros (esses critérios eram estabelecidos com base em questionários a respeito de sintomas respondidos pelos pacientes), e dois se suicidaram efetivamente.

Já seria um absurdo essa “prova” por si só: que “quase 30%” dos indivíduos deprimidos tivessem uma baixa taxa de serotonina não significaria muito. Mas era ainda pior: Whitaker reviu o estudo e comparou as taxas de serotonina dos grupos de pacientes deprimidos e do grupo de controle utilizado por Asberg: a curva de distribuição era praticamente idêntica. 29% dos deprimidos tinha baixa serotonina, enquanto no grupo de controle essa taxa atingia 25%. O nível médio de serotonina no grupo de controle era de 20 nanogramas de 5-HIAA (produto da metabolização da serotonina); já no grupo dos deprimidos, mais de metade dos indivíduos (37 de 68) tinham níveis acima desse valor. Sobrepondo as curvas de distribuição de serotonina nos grupos de pacientes deprimidos e no grupo de controle, via-se que eram praticamente idênticas.

Whitaker expõe o ridículo dessas “provas” mostrando que, no Japão, os cientistas tinham uma hipótese oposta – de que a depressão era causada por um excesso de serotonina nas fendas sinápticas – e que poderiam perfeitamente usar o estudo de Asberg como uma “prova” de sua teoria (já que 24% dos pacientes deprimidos no estudo tinham taxas altas de serotonina) (3). A única prova é que não havia prova alguma. Poderíamos citar diversos outros estudos que comprovam exatamente isso. Como afirmou o psiquiatra David Healy, autor de diversos livros sobre a história da psiquiatria, “A teoria serotoninérgica da depressão é comparável à teoria masturbatória da loucura” (4).


A "explicação científica" dos transtornos mentais logo se popularizou graças ao esforço "educativo" da indústria farmacêutica

Em relação à teoria dopaminérgica, Whitaker faz uma exposição semelhante, resgatando estudos que mostram a completa falácia dessa hipótese. Contudo, não apenas essas teorias, exaustivamente comprovadas como falsas, continuam a ser marteladas nas cabeças de estudantes de medicina, na imprensa, na cabeça de pacientes e do público leigo, como “novas teorias” do desequilíbrio químico continuam sendo o fundamento “científico” para novas drogas, novas doenças, novos tratamentos. É o caso do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), um diagnóstico relativamente recente que vêm sendo a base “clínica” e “teórica” para que milhões de crianças passem a tomar Ritalina. E, sabe de onde vem a teoria de que o TDAH é causado por níveis baixos de dopamina? Do fato de que a Ritalina aumenta os níveis de dopamina... Assim, o procedimento padrão da indústria psicofarmacêutica tem sido o mesmo desde os anos 1950: “descobre-se” um diagnóstico e uma droga para trata-lo (não necessariamente nessa ordem); em seguida, se estuda como a droga age nos neurotransmissores e, enfim, se informa amplamente que a “causa” da doença é o efeito oposto ao da droga que já se utilizava para trata-la: ausência ou excesso de X neurotransmissores.

A “segunda onda” da “revolução psicofarmacológica”: aprimorando as fraudes (e os lucros)

A grande marca de uma suposta “renovação” do tratamento medicamentoso das doenças mentais com as drogas “de segunda geração” foi o lançamento do Prozac, em 1988. O mecanismo de investir pesado em propaganda e na ocultação de evidências científicas contrárias às suas drogas já havia sido assimilado pela indústria, e foi praticado novamente em uma escala muito maior. Seu modelo de diagnósticos foi todo revisto na edição de 1980 do DSM-III (Manual de Diagnósticos e Estatísticas da Sociedade Americana de Psiquiatria), o que será assunto para um próximo artigo. E o caminho do Prozac é ilustrativo dessa psiquiatria “renovada”.

Em 1977, a companhia Eli Lilly conduziu seu primeiro estudo em humanos com a Fluoxetina, substância que seria comercializada com o nome de Prozac e que deu origem aos ISRS (Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina). “Nenhum dos oito pacientes que concluíram o tratamento de quatro semanas exibiu uma clara melhora induzida pelo medicamento”, como relatou o cientista Ray Fuller em 1978 a seus colegas da Eli Lilly. Ele também atestou que a fluoxetina havia causado “um número bastante grande de relatos de reações adversas”. Um paciente tivera um surto psicótico ao tomar a medicação e outros haviam sofrido de acatisia (inquietação motora acompanhada de sentimento de grande ansiedade, que aumenta sensivelmente os riscos de suicídio) (5).

Nada que uma pequena fraude metodológica não pudesse resolver: nos estudos seguintes, a Eli Lilly introduziu o uso de benzodiazepínicos (calmantes) para controlar a agitação. A fraude aí estava não apenas em falsear os efeitos colaterais, mas também em interferir completamente no controle dos resultados dos testes. A única preocupação era aprovar a comercialização do Prozac.


A popularização do Prozac o tornou parte da cultura pop. Poster do filme "Geração Prozac", baseado na autobiografia de Elizabeth Wurtzel

Mesmo assim os resultados foram ruins. Em 1985 o órgão alemão de licenciamento, o Bundersgesundheitsamt (BGA) emitiu seu parecer sobre os testes do Prozac, dizendo que a medicação era “totalmente inadequada para o tratamento da depressão” (6). Os motivos eram eloquentes: nas autoavaliações dos pacientes (as que não eram feitas pelos médicos contratados pela própria Eli Lilly) o medicamento produzia “pouca ou nenhuma resposta ou melhora no quadro clínico dos pacientes”. Já os efeitos colaterais eram bem expressivos: psicose, alucinações, aumento da ansiedade, agitação e insônia, “os quais, como efeitos adversos, ultrapassaram os níveis considerados aceitáveis pelos padrões médicos”, como disse o BGA. Mas o mais escandaloso era o fato de que o Prozac induzia ao suicídio, conforme relatou o BGA: “Foram feitas 16 tentativas de suicídio, duas delas com sucesso”. Um dos funcionários da Eli Lilly calculou, privadamente, que a incidência de atos suicidas entre os pacientes medicados com Prozac era 5,6 maior quando comparados com os que usavam outro medicamento ativo, a imipramina (7).

Isso levou à rejeição do registro da fluoxetina na Alemanha, e a Eli Lilly decidiu contar uma “verdade alternativa” para a FDA e conseguir registrar o medicamento nos EUA: os funcionários foram instruídos a registrar diversos efeitos colaterais causados pela droga como “sintomas de depressão”, fazendo com que fossem percebidos como parte da doença, e não como causados pelo remédio. Também os dados nas fichas dos pacientes trocaram o termo “ideação suicida” por “depressão”; e, ainda, quando os dados referentes aos testes alemães foram examinados, os funcionários da empresa “retiraram os casos [de suicídio] que julgaram não ser suicídios” (8).

Nos EUA, os testes controlados por placebo (administração de uma medicação sem princípio ativo para um grupo de controle) foram feitos em oito locais diferentes, e em quatro deles a fluoxetina não foi melhor do que o placebo. Nos demais, o resultado foi ligeiramente melhor do que o placebo. Além disso, em seis de sete estudos a imipramina tinha obtido resultado superior ao da fluoxetina. Dos pacientes que foram submetidos à medicação, 39 tinham desenvolvido surtos psicóticos, e mais de 1% ficaram maníacos ou hipomaníacos, entre diversos outros efeitos colaterais. Mesmo assim, o Prozac foi aprovado para comercialização em 1988. Em 1997, era o medicamento com maior número de queixas nos EUA, com 39 mil registros no programa MedWatch da FDA. As queixas incluíam centenas de suicídios além de muitos efeitos colaterais como depressão psicótica, mania, raciocínio anormal, alucinações, hostilidade, confusão, amnésia, convulsões, tremores e disfunção sexual. A FDA calcula que apenas 1% dos efeitos adversos chega a ser comunicado do MedWatch, e, portanto, se estima em 4 milhões de americanos que em apenas nove anos teve uma reação adversa, que poderia chegar ao suicídio, por efeito do Prozac.

Nada disso, no entanto, foi páreo para a quantidade de dinheiro investida para a publicidade do Prozac, o que incluía a “compra” de médicos renomados no meio acadêmico para que divulgassem “resultados científicos positivos” da fluoxetina, cursos de “conscientização popular” sobre os males da depressão, milhares de artigos na imprensa falando sobre a “revolução” da nova medicação, etc. As demais empresas do ramo, aprendendo com a fórmula de sucesso do Prozac, adotaram procedimentos semelhantes. Novas drogas como o Xanax (alprazolam), um novo ansiolítico, foi não apenas lançado com grande estardalhaço, mas também vendido como a “cura” para a “nova doença” da síndrome do pânico, que fora “descoberta” pelo DSM III em 1980. Em seguida, vieram os antipsicóticos atípicos. E por aí vai, até hoje, com novas “curas milagrosas” sendo descobertas dia a dia.

A iatrogenia em larga escala como resultado do “milagre psicofarmacológico”

O pior de tudo, no entanto, não é o fato de que essas falsas curas vêm nos enganando e lucrando bilhões. Mas sim o fato de que elas são iatrogênicas, ou seja, são elas mesmas causadoras de patologias. E vêm nos adoecendo cada vez mais. Pacientes que não são submetidos aos tratamentos medicamentosos têm melhor prognóstico, mais chances de se curar e de não ter recaídas ao longo da vida. Estudos de diversos tipos mostram isso, e até mesmo um estudo da OMS apontou que nos países pobres, como Nigéria e Índia, onde apenas 16% dos pacientes esquizofrênicos recebem tratamento medicamentoso regular, os prognósticos são muito melhores.

Como foi demonstrado exaustivamente ao longo de mais de cinquenta anos – e negado mil vezes pela indústria e seus mecanismos de propaganda – não existe absolutamente nenhuma comprovação de que haja qualquer distúrbio químico ou causa biológica para as doenças psíquicas. O dogma que é repetido mil vezes aos pacientes é uma farsa.

Mas o que alguns estudos comprovaram é o contrário: são as drogas que causam desequilíbrios e mesmo alterações fisiológicas degenerativas no cérebro. Por exemplo, na esquizofrenia, adventou-se a hipótese de que sua causa seria a do excesso de dopamina. Mas enquanto estudos tentavam demonstrar que seria esse o problema dos esquizofrênicos – com base justamente no fato de que os antipsicóticos bloqueavam os receptores de dopamina e assim diminuiriam sua atividade – outros estudos eram publicados e mostravam justamente que os níveis de dopamina dos esquizofrênicos eram normais (9).

Logo em seguida, novos estudos mostraram que o que ocorria ao administrar os medicamentos é que o cérebro reagia aumentando a quantidade de receptores de dopamina, numa tentativa do corpo de compensar os efeitos causados pelos remédios. Em 1982, um estudo concluiu que “os aumentos dos receptores só foram observados em pacientes em quem a medicação neuroléptica tinha sido mantida até a época da morte, o que indicou que eram inteiramente iatrogênicos [causados pela droga]” (10).

O mesmo tipo de reação foi observado em relação aos antidepressivos que aumentavam a taxa de serotonina: o corpo reage diminuindo os receptores desse neurotransmissor como uma forma de tentar compensar o efeito causado pelo remédio. A conclusão é que, enquanto se vende a imagem de que os remédios estariam “corrigindo” um desequilíbrio químico no cérebro, eles de fato são os causadores de desequilíbrios iatrogênicos.

O que os estudos sobre os resultados da administração dessas drogas aos pacientes mostram também são resultados muito diferentes dos que nos vendem os discursos midiáticos, médicos, publicitários. Os dados que embasaram os efeitos positivos dos remédios foram estudos feitos a curto prazo, ou estudos em que após o período inicial a medicação era retirada abruptamente. Eles levaram a duas conclusões: os medicamentos “funcionavam” (diminuíam os sintomas) melhor do que os placebos (simulacros de remédios sem princípio ativo para efeito de controle), e eles preveniam recaídas. Isso era uma “bênção” para a indústria farmacêutica, pois a partir daí a psiquiatria passou a “rezar a cartilha” de que os remédios deveriam ser mantidos “como a insulina de um diabético”. A indústria ganhava, a cada psicótico ou deprimido medicado, um “cliente para toda a vida”.

Mas o fato é que estudos mostraram que os pacientes que recebiam medicação tinham probabilidade muito maior de terem recaídas. Em estudos conduzidos em 1967, 1971 e 1977 sobre a clorpromazina os pesquisadores descobriram que apenas 7% dos que haviam recebido um placebo sofreram recaídas, comparados com 65% dos que tomavam mais de 500mg de clorpromazina antes da suspensão do medicamento; e que “a recaída tem maior gravidade durante a administração de drogas do que quando não é fornecida nenhuma medicação” (11). Ou seja, continuando ou não a tomar os remédios, a clorpromazina agravava a doença. Diversos outros estudos mostram como os resultados de pacientes não medicados são superiores aos dos medicados.


Propaganda de Thorazine (clorpromazina) falava sobre como a introdução do remédio diminuiu o número de tratamentos por eletrochoque nos hospitais.

Isso sem falar que os próprios efeitos do Thorazine (nome comercial da clorpromazina nos EUA) já eram muito questionáveis em si: desde intensas dores físicas até tornar pacientes em “zumbis” afetivamente, a lista de efeitos colaterais é imensa. A tal ponto que veio à tona na década de 1970 que o governo stalinista da URSS utilizada o Thorazine como método de tortura (o que evidentemente também ocorria, com esse medicamento e outros métodos como a ECT – eletro-convulso terapia – em todos os países que adotavam o modelo manicomial de tratamento). Outros efeitos gravíssimos ocorrem, como degeneração cognitiva e hiperssensibilização à psicose.


propaganda de Thorazine indicava o uso do remédio para casos de soluço crônico

No caso das benzodiazepinas, até hoje a classe de medicamentos calmantes de maior popularidade, com nomes comerciais como Alprazolam, Lorazepan, Frontal, Valium, Bromazepan, entre outros, os efeitos também são nefastos. Os estudos mostraram não apenas que a ansiedade que controlam nos primeiros usos volta de forma redobrada dentro de quatro a seis semanas de uso (12), como também pintaram um quadro bastante assustador dos problemas decorrentes do vício e das crises de abstinência. Entre os efeitos colaterais foram listados a ansiedade de rebote (o retorno da ansiedade a níveis mais altos do que antes da introdução da medicação), insônia, convulsões, tremores, dores de cabeça, embotamento da visão, tinidos auditivos, extrema sensibilidade a ruídos, sensação de insetos rastejando no corpo, pesadelos, alucinações, depressão extrema, despersonalização e desrealização (sensação de que o mundo externo é irreal) (13).

As pesquisas sobre os antidepressivos, em relação a seu resultado, foram semelhantes às conduzidas com os antipsicóticos, mostrando um efeito mínimo a curto prazo e a perspectiva de cronificação da doença, com mais episódios de recaída e menor perspectiva de melhora para os pacientes tratados com a medicação. Mesmo a ligeira vantagem dos remédios de primeira geração sobre os placebos foi desmentida por estudos conduzidos em 1982 em que um placebo ativo (que produzia algum efeito colateral) foi utilizado: em seis dos sete estudos, o resultado foi idêntico para a medicação e o placebo. Com a entrada da segundal geração a partir do Prozac, os resultadora foram ainda piores, pois as pesquisas mostraram menor eficácia dos medicamentos (além dos absurdos que foram ocultados e que listamos anteriormente).

Para termos uma breve dimensão dos efeitos iatrogênicos desses remédios, basta verificarmos que em 1955 havia 38.200 pessoas internadas por depressão nos EUA (1 a cad 4.345 habitantes). Hoje, a depressão é a principal causa de invalidez no país para pessoas entre 15 e 44 anos. Estima-se que a doença afete 15 milhões de americanos adultos e que 58% desse grupo esteja “gravemente prejudicado” (14). Uma doença que, antes da era psicofarmacológica, era considerada pouco frequente e de bom prognóstico, sendo que seus sintomas remetiam sem nenhum tipo de intervenção médica em uma quantidade muito alta de casos, como em um estudo de 1972 que dizia que 50% das pessoas hospitalizadas por depressão não tiveram recorrência da doença, e apenas 10% haviam se tornado cronicamente doentes (15).

Pacientes vão mal, lucros vão bem

Pode ser que para os pacientes o saldo dessa “revolução” medicamentosa tenha sido negativo. Mas os lucros da indústria atestam outro resultado, sendo que as dez maiores companhias farmacêuticas do mundo lucraram ao todo 89,8 bilhões de dólares apenas em 2013 (16). E era de se esperar, considerando que os medicamentos tornavam as doenças crônicas e criavam “clientes vitalícios”.

Os investimentos em propaganda também atestam a importância que os laboratórios dão à “educação” dos médicos, seus principais vendedores: uma pesquisa de 2010 do Conselho Regional de medicina de São Paulo (Cremesp) aponta de 80% dos médicos paulistas recebem representantes dos laboratórios (mais conhecidos como “propagandistas”), e cada um destes visita de dez a vinte consultórios por dia. Nos EUA, essa estratégia de “marketing corpo a corpo” siginificou um gasto de quase 15 bilhões de dólares apenas em 2012 (17). A BBC fez um levantamento demonstrando que as dez maiores empresas farmacêuticas globais gastaram em 2013 um valor de 98,3 bilhões de dólares em marketing e vendas (18). Enquanto isso, no mesmo período, o gasto em pesquisa científica dessas mesmas companhias foi de 65,8 bilhões de dólares, ou seja, 33% a menos (19).

A natureza das informações prestadas nesse processo “educativo” são bastante duvidosas, no mínimo: em 2012 a GlaxoSmithKline foi condenada a pagar 3 bilhões de dólares por promover usos não aprovados dos antidepressivos Wellbutrin e Paxil.


Propaganda de Wellbutrin afirma que ele combate a depressão com "baixo risco de ganho de peso e efeitos colaterais sexuais".

Para “ganhar” os médicos, esses propagandistas não apenas levam suas “informações”, mas muitos “agrados” aos médicos: um levantamento feito na Califórnia mostrou que a GlaxoSmithKline estabelecia um limite de 2.500 dólares anuais gastos por médico com presentes; a Eli Lilly estabelecia esse valor em 3 mil dólares por médico (20). Viagens a congressos também são um “agrado” comum aos médicos: pesquisa do Cremesp de 2010 mostrou que um a cada dez médicos havia viajado no ano anterior para congressos com despesas pagas por laboratórios, e mais de um quarto participou de eventos “educativos” pagos pela indústria (21).

Contudo, essas são as despesas do “varejo” com os médicos. Para difundir as informações que desejam sobre os tratamentos que criam – e que evitem todos os dados que fornecemos acima – os laboratórios investem pesadamente em figurões da psiquiatria acadêmica para dar respaldo “científico” a seus remédios. Estes são chamados em memorandos internos das empresas de “Líderes Formadores de Opinião” (LFO). Vejamos apenas alguns de seus “cachês”:

Charles Nemeroff, chefe do departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Emory, em Atlanta, ganhou pelo menos 2,8 milhões de dólares como palestrante e consultor de empresas farmacêuticas entre 2000 e 2007. 960 mil dólares foram apenas da GlaxoSmithKline pela promoção do Wellbutrin e do Paxil (sim, aqueles mesmos do processo de 3 bilhões citado ali acima). É co-autor do Manual de Psicofarmacologia da Associação de Psiquiatria Americana, o livro didático mais vendido em seu campo. Zachary Stowe, seu colega docente na Emory, recebeu 250 mil dólares também da GlaxoSmithKline entre 2007 e 2008 para promover o uso de Paxil por mulheres lactantes.


13.º Congresso Mundial de Biologia Psiquiátrica na Dinamarca dá uma dimensão dos eventos em que as maiores palestras são feitas por médicos patrocinados pela indústria farmacêutica

Outro palestrante da GlaxoSmithKline, que recebeu 1,2 milhão de dólares de 2000 a 2008 da empresa para promover o uso de estabilizadores de humor para transtorno bipolar, é Frederick Goodwin, ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH). Ele é co-autor do compêndio “Doença Maníaco-Depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente”, livro de referência sobre essa doença. Whitaker ainda destaca duas emblemáticas declarações de Goodwin: uma em seu programa de rádio “The Infinite Mind”, em setembro de 2005, quando disse que se crianças com transtorno bipolar não fossem tratadas seus cérebros poderiam sofrer lesões – uma dessas típicas informações absurdas e desprovidas de qualquer valor científico que levam os pais desesperados a colocar seus filhos à mercê dos psiquiatras e da indústria. A outra declaração, dada do New York Times, foi de que ao exercer sua atividade “educativa” remunerada para os laboratórios (entre os quais o GlaxoSmithKline é apenas um), ele estava apenas “fazendo o que fazem todos os outros especialistas da área”. Karen Wagner, diretora do departamento de psiquiatria da infância e da adolescência da Universidade do Texas, recebeu mais de 160 mil dólares entre 2000 e 2005 da GlaxoSmithKline para promover o uso de Paxil por crianças. Uma de suas atividades nesse sentido foi relatar resultados falsos de um ensaio pediátrico desse antidepressivo (22).

Essas são apenas pequenas amostras dos mecanismos que a psiquiatria vem utilizando, ao longo de décadas, para promover uma concepção médica que vem causando doenças e matando pessoas aos milhões, contribuindo para tornar as doenças mentais uma verdadeira epidemia social. A medicina do capital em pleno funcionamento.

sábado, 27 de junho de 2020

A fraude da psicofarmacologia (parte 1)




Nesse artigo e no próximo procuraremos abordar de forma bastante resumida o principal paradigma da psiquiatria nos últimos 70 anos, o da psiquiatria biológica, por meio de sua consequência mais concreta: o desenvolvimento da indústria psicomarmacêutica, sua incrível expansão e seus efeitos sobre a saúde mental das populações atendidas por um sistema de saúde que opera nessa lógica. As concepções de mente e psiquismo que embasam essa prática – e que, como veremos, são curiosamente mais uma justificativa “científica” criada a posteriori do que uma concepção teórica que deu origem a uma prática médica – serão abordadas apenas de passagem, pois em um próximo artigo pretendemos debater essa questão mais a fundo.

Hoje em dia vemos em muitas partes, desde campanhas de conscientização feitas por ONGs, governos, indústrias, associações, até os comentários de pessoas nas redes sociais, nas conversas, a concepção da importância de entender que os diagnósticos mais comuns da psiquiatria, como depressão, transtorno de ansiedade generalizada (TAG), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), síndrome do pânico, transtorno bipolar, esquizofrenia, entre outros, são doenças. Isso é colocado pelos que foram diagnosticados com algum desses males como uma oposição aos que encaram as doenças mentais como “fraqueza”, “frescura” ou coisas do tipo.

A “prova” que todos utilizam habitualmente é o discurso que foi popularizado pela psiquiatria moderna: trata-se de um desequilíbrio neuroquímico em que as taxas de neurotransmissores cerebrais, como a dopamina ou a serotonina, estão desreguladas. Por isso, é um problema de saúde “como qualquer outro”, e que, “como qualquer outro” tem um tratamento medicamentoso adequado, que pode ser prescrito por um especialista – um psiquiatra – para que seu cérebro fique regulado e volte a funcionar normalmente. É doença porque tem uma “prova biológica” disso. Sobre essa base teórica, que considera que a doença para ser “real” necessita de um “substrato fisiológico”, discutiremos mais à frente; do que trataremos aqui são suas consequências.

Bom, para o bem ou para o mal esse texto cumpre o papel de dizer que essa história é uma mentira construída sob uma massiva campanha de propaganda regada a bilhões de dólares da indústria farmacêutica. E, não, não se trata de nenhuma teoria da conspiração. O brilhante e extensivamente documentado livro do jornalista estadounidense Robert Whitaker, “Anatomia de uma epidemia”, lançado originalmente em 2010 e recentemente traduzido ao português por Vera Ribeiro e editado pela Fiocruz recentemente conta em sórdidos detalhes essa história. Tomaremos os dados por ele levantados a partir de uma ampla gama de pesquisas, entrevistas e investigação de diversas fontes como base fundamental para o que apresentamos nesse texto. Mas deve-se ter em mente que ele não é o único; a corrente crítica ao modelo psiquiátrico hegemônico é bastante antiga, desde pelo menos o movimento antipsiquiatria dos anos 1960, e vem ganhando muitos adeptos frente aos crimes praticados pela indústria farmacêutica em conluio com a medicina acadêmica.

Comecemos com um dado bem eloquente sobre o que está por trás, a causa mais concreta para o impulso irrefreável do aumento das drogas psiquiátricas: em 1987 – quando a suposta “revolução” psicofarmacólogica já tinha mais de trinta anos e estava às vésperas de seu segundo grande impulso com o lançamento do Prozac – os EUA gastavam US$ 800 milhões de dólares em drogas psiquiátricas; em 2007 esse número chegava a US$ 40 bilhões. Um aumento em 50 vezes em apenas vinte anos (1).


Revista Time fala sobre a "arma secreta" da guerra do Iraque: soldados medicados com Prozac

Contudo, ao contrário do que seria de se esperar, esse aumento assombroso no consumo de drogas psiquiátricas não representou uma contrapartida em termos de saúde pública. Se os remédios são tão eficazes para combater os problemas de saúde mental, seria de se esperar que eles estivessem sendo reduzidos. Mas não: nos EUA, a capital mundial da indústria psicofarmacêutica, em 1955, havia 355.000 pessoas internadas em hospitais psiquiátricos por doenças mentais, ou seja, 1 em cada 468 americanos. Whitaker compara esses números com os que recebem pensão do governo em decorrência de doenças mentais, uma vez que o modelo de internação psiquiátrica foi – felizmente – colocado em desuso: em 1987 havia 1,25 milhões de americanos recebendo pensão do governo por esse motivo.

Se quisermos, contudo, comparar apenas os dados das pensões (já que poderia se argumentar discrepâncias entre os critérios das internações e das pensões de diversas ordens), Whitaker nos fornece também esse dado. Em 1987 o Prozac é liberado para comercialização pelo governo dos EUA. Em duas décadas, no ano de 2007, o número de pensionistas por incapacitação para o trabalho em decorrência de doenças psiquiátricas era de 3,97 milhões, ou seja, 1 a cada 76 americanos. Mais do que o dobro de 1987 e seis vezes mais do que os internados de 1955 (2).

Entre os jovens, particularmente, a epidemia de doenças mentais deu um salto ainda mais abrupto. Um estudo de 2007 da revista Archives of General Psichiatry apontava que o número de crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno bipolar aumentou 40 vezes entre 1994 e 2003: de 25 a cada 100 mil pacientes, para 1.003 a cada 100 mil pacientes. Esse estudo foi divulgado no jornal Folha de S. Paulo com entrevistas de psiquiatras que forneciam uma explicação sucinta para o fenômeno: era apenas um reflexo no aperfeiçoamento do diagnóstico, que permitia identificar jovens adoecidos que antes passavam batidos (3). Falando do Brasil, na mesma edição da Folha aparecia uma reportagem sugerindo que o aumento só não era tão grande em nosso país pela insuficiência de diagnósticos. Mesmo assim, no Hospital das Clínicas da USP naquele ano o número de crianças com esse diagnóstico passou de 22 em 1995 para 135 em 2007 (4).

Além do aumento dos pacientes psiquiátricos em geral, como os dados acima demonstram, o aumento em relação aos transtornos afetivos – fundamentalmente a depressão e o transtorno bipolar – foram particularmente chamativos. Nos EUA, em 1955, havia 50.937 pessoas em hospitais psiquiátricos com esses diagnósticos. Em 2010 estimava-se que 1,4 milhões de americanos recebiam pensões por incapacitação em decorrência dessas doenças. Entre os jovens, a tendência se agrava em relação aos transtornos afetivos: em 2006 46% dos adultos jovens (18 a 26 anos) que recebiam pensão por doenças psiquiátricas enquadravam-se em um transtorno afetivo (e 8% em transtorno de ansiedade) (5). Um relatório do governo americano de 2008 afirmava que 1 em cada 16 adultos jovens dos EUA tinha uma “doença mental grave” (6).


Gráfico demonstra crescimento do número (em milhões) de pessoas que recebem pensão do governo nos EUA por serem consideradas inaptas ao trabalho após o lançamento do Prozac (1987)

O que acontece então? Seria apenas a “melhora dos diagnósticos” que fez o número de enfermidades mentais se revelar uma das principais epidemias da saúde pública contemporânea? De acordo com essa lógica, sempre vivemos em um mar de doenças mentais, mas apenas não nos dávamos conta disso. É isso que a psiquiatria moderna quer nos fazer acreditar. Poderia ser difícil, mas eles tem o mais importante aliado no capitalismo: o capital. Claro que a expansão do diagnóstico cumpre também um papel – que abordaremos em outro texto – mas o que queremos apontar aqui é o impacto da iatrogenia: as doenças causadas, agravadas ou tornadas crônicas pelo próprio tratamento médico. Essa é a barbárie que a indústria farmacêutica e a psiquiatria tem ocultado há décadas.

Primeiro os remédios, depois as teorias

Hoje vemos como bárbaros diversos métodos utilizados na psiquiatria em sua era pré-farmacológica: duchas de alta pressão torturantes contra os pacientes; injeções de extrato de tireóide de ovelha; injeções de sais metálicos; soro equino; arsênico; até a extração de dentes de seus pacientes foi reportada pelo superintendente do Hospital Estadual de Trenton, em Nova Jersey, como um “sucesso” em 1916 (7). Esses foram os primeiros “êxitos” de um momento em que a psiquiatria quis se transformar em “ciência”, ou seja, abandonar o que chamavam de “tratamento moral” instituído por Phillipe Pinel e implementar tratamentos físicos. O objetivo dos psiquiatras era, enfim, alcançar o status de outras especialidades médicas que tinham tratamentos “eficazes e comprovados” para as enfermidades. Seguiu-se essa linha com os comas insulínicos induzidos, as terapias convulsivas com veneno (metrazol) ou com eletrochoque (essa ainda utilizada com uma “eficácia” comprovada que tem muito em comum com os psicofármacos).

O mais “revolucionário” dos tratamentos desse período rendeu a seu criador, Antonio Egaz Moniz, o prêmio Nobel de Medicina. Tratava-se da lobotomia, intervenção cirúrgica que são cortadas as vias de ligação dos lobos frontais do cérebro com o tálamo. Ou seja, uma lesão cerebral irreversível. Esse “milagroso” procedimento “transforma animais selvagens em criaturas gentis, no curso de algumas horas”, como afirmou o New York Times (8). 6% dos pacientes não sobreviviam ao procedimento. Foi realizado em cerca de 50.000 pessoas apenas nos EUA, inclusive em crianças com “mau comportamento” (qualquer semelhança com o que ocorre hoje com psicofarmácos e a Ritalina para medicar crianças hiperativas não é mera coincidência) (9).


Esquema mostra técnica de lobotomia que utiliza picador de gelo introduzido acima do canal desenvolvida por Walter Freeman, popularizador do procedimento nos EUA.

A lobotomia atingiu seu auge de popularidade no período pós-segunda guerra, quando foi amplamente utilizada em veteranos traumatizados com os horrores dos combates. Chegaram ser realizadas 5 mil procedimentos por ano nos Estados Unidos, com um saldo de 250 a 500 mortes, entre os casos de “sucesso” que deixavam os pacientes lesionados permanentemente “dóceis” (10). A barbárie da lobotomia – bem como da abordagem psiquiátrica manicomial, um capítulo monstruoso no qual não entraremos aqui – e de seu uso foi popularizada com o brilhante filme “Um estranho no ninho”, de 1975.

A lobotomia caiu em desuso com a descoberta do primeiro psicofármaco: a clorpromazina. Contudo, ainda são utilizados outros métodos de “psicocirurgia” em muitos hospitais, como a cingulotomia, que, por meio de um eletrodo colocado dentro do cérebro, destrói tecidos de 8x18mm. Como afirmou o próprio Reese Cosgrove, o psicocirurgião mais importante dos EUA, “Não entendemos a fisiopatologia: não temos nenhuma compreensão dos mecanismos que fazem o procedimento funcionar” (11). Ou seja, eles não fazem a menor ideia do que estão fazendo com a mente do paciente, mas sabem que “funciona” (da mesma forma que “souberam” que a lobotomia, as injeções de insulina, as duchas d’água de alta pressão e outros métodos hoje ridicularizados “funcionavam”). Parece selvagem para você? Infelizmente veremos que com os remédios a coisa não é tão diferente.

O primeiro remédio psiquiátrico, a clorpromazina, foi descoberto por um cirurgião francês, Henri Laborit, em 1949, seu uso seria o de um anti-histâminico para cirurgias. Mas logo ele viu que ela possuía um efeito sedativo e cogitou sua possibilidade como anestésico. Em 1951, num congresso em Bruxelas, sugeriu que poderia ter uso psiquiátrico pois “produzia uma verdadeira lobotomia medicamentosa”. Não nos parece um dado menor que a comparação do sucesso da droga tenha sido com o procedimento “domesticador” da lobotomia. Veja como descreveram os efeitos da clorpromazina os psiquiatras Jean Delay e Pierre Deniker, que em 1952 passaram a administrá-la a pacientes psicóticos na França:

“Sentado ou deitado, o paciente permanece imóvel na cama, amiúde pálido e com as pálpebras abaixadas. Mantém-se em silêncio na maior parte do tempo. Quando interrogado, responde após uma pequena demora, devagar, em tom monótono e indiferente, expressando-se em poucas palavras e emudecendo depressa. Sem exceção, a resposta costuma ser válida e pertinente, o que mostra que o sujeito é capaz de atenção e reflexão. No entanto, raras vezes toma a iniciativa de formular alguma pergunta; não expressa preocupações, desejos nem preferências. Em geral, tem consciência da melhora trazida pelo tratamento, mas não manifesta euforia. A aparente indiferença ou a demora na reação aos estímulos externos, a neutralidade emocional e afetiva, a redução da iniciativa e da preocupação, em alteração da percepção consciente ou das faculdades intelectuais, constituem a síndrome psíquica decorrente do tratamento” (12).

Corretamente, os psiquiatras na época – o que não duraria muito tempo – não consideraram que estavam “curando” e nem sequer “tratando” alguém com essa administração medicamentosa, mas sim facilitando o “manejo” dos pacientes ou ajudando a que fosse feito o tratamento terapêutico (a psiquiatria ainda tinha como modelo hegemônico a psicanálise e suas variações). Mesmo Deniker alertou para os graves efeitos colaterais que rapidamente surgiam (para além dos próprios efeitos psíquicos descritos acima): sonolência reversível e, depois, discinesia (movimentos involuntários e anormais), hipercinesia (movimentos excessivos) e parksonismo (já uma primeira indicação de lesões cerebrais) (13). Assim, foi descoberto o primeiro remédio da classe dos “neuroléticos”.

Logo em seguida surgiria o primeiro tipo de tranquilizante, descoberto de forma semelhante: procurando um antibiótico de tipo gram-negativo, o químico Frank Berger esbarrou em uma substância que causava um tipo novo de relaxamento muscular e letargia em cobaias animais. Desenvolvendo essa droga, chegou ao meprobamato, logo introduzido no mercado pela empresa farmacêutica para a qual Berger trabalhava, a Wallace Laboratories. Com o nome de Miltown, essa droga passou a ser comercializada e levou a um efeito cascata em que outros laboratórios correram atrás de substâncias com efeitos semelhantes, como o clordiazepóxido, desenvolvido pela Hoffman-La Roche e comercializado com o nome de Librium.


Propaganda nos anos 50 diz que "a gravidez pode se tornar uma experiência mais feliz" com Miltown

Os efeitos “anti-ansiedade” obtidos com cobaias se expressavam em ratos que pressionavam alavancas para conseguir comida mesmo sabendo que levariam um choque. Como sintetizou um artigo em uma publicação científica da época, traduzindo em termos humanos, “isto significa que ainda poderia sentir medo ao ver um carro acelerar na sua direção, mas o medo não o faria correr” (14). Claro que a propaganda para o grande público pintava os efeitos sedativos do Miltown em cores bastante diversas.

A última das três descobertas que impulsionaram a chamada “revolução psicofarmacológica” foi a iproniazida: surgida a partir de combustíveis alternativos para foguetes desenvolvidos por cientistas alemães na segunda guerra, a iproniazida foi sintetizada em 1951 por químicos da Hoffman-La Roche para servir como remédio para a tuberculose. Administrada em sanatórios, constatou-se um efeito colateral de deixar os pacientes excessivamente animados, e então passaram a testar a iproniazida como remédio para pacientes deprimidos. A alta coleção de efeitos colaterais dos tuberculosos tratados com a droga, como tonteira, constipação, dificuldade para urinar, neurite, sensações irritantes na pele, confusão e psicose, não foram suficientes para desmotivar o psiquiatra Nathan Kline, que em 1957 relatou que os pacientes tratados com iproniazida por pelo menos cinco semanas apresentavam melhora dos sintomas da depressão. Assim, foi colocado em uso médico o primeiro “estimulante”, como foi classificada inicialmente a iproniazida.

Esse brevíssimo relato do surgimento das três primeiras drogas psiquiátricas entre 1954-1957 é suficiente para levantar o questionamento sobre os métodos supostamente “científicos” por trás da indústria farmacêutica. Essas drogas, que passaram a ser administradas pelos médicos, não tinham nenhum conhecimento sólido a seu respeito estabelecido. Não se conheciam seus mecanismos de ação, a forma como agia sobre o cérebro, e nem sequer havia uma teoria minimamente embasada na ciência médica sobre quais seriam os fatores etiológicos (as causas) das doenças mentais. Os medicamentos foram desenvolvidos sob a base do mais rasteiro empirismo, com critérios de tornar pacientes mais “administráveis” pelos médicos, ou de aliviar sintomas isolados.

O que garantiu então a construção da credibilidade dessas substâncias para os pacientes?

Corporativismo, propaganda, governo e imprensa a serviço da fábula medicamentosa

Nos EUA a regulamentação das medicações está associada desde o início ao corporativismo médico e uma iniciativa que, longe de ter como objetivo a garantia de “comprovação científica” ou mesmo de “eficácia”, procurava estabelecer uma reserva de mercado aos médicos na qual estes fossem os únicos detentores “legítimos” do conhecimento sobre as doenças e suas curas. Isso começa no início do século XX com a American Medical Association (AMA – Associação Médica Americana) que organizava sob seus próprios critérios um “departamento de propaganda” que supostamente dizia quais remédios eram “charlatanice” e quais eram “eficazes” (que essa atribuição seja a do departamento de “propaganda” já diz tudo). É evidente, os remédios “éticos” da AMA eram os produzidos pela indústria farmacêutica. Assim, se consolida a primeira aliança corporativista entre médicos e indústria, em que a credibilidade dos médicos é utilizada para legitimar a indústria, e os remédios desta são os instrumentos que conferem o nicho exclusivo aos médicos, já que são eles que os receitam.

O segundo passo nesse processo foi a entrada do governo, em 1938, nesse jogo de reserva de mercado, em que a FDA (Federal Drug Administration) aprovaria os remédios “seguros” (a eficácia só foi colocada em questão em 1980, com direito a campanha da AMA contra a necessidade de que essa precisasse ser comprovada). Depois, em 1951, uma lei instituiu que as receitas médicas seriam obrigatórias para a compra e vende de medicações. Estava assegurada, de uma vez por todas, a reserva de mercado dos médicos como detentores da saúde e da doença. Aos pacientes caberia ser seus clientes, aos farmacêuticos, tornarem-se varejistas da indústria obedecendo às prescrições dos todo-poderosos médicos. Os médicos, por sua vez, tornam-se os “garotos propaganda” das inovações da indústria. Como disse a revista Fortune, em 1965: “Ao que parece, a posição do próprio médico no mercado é fortemente influenciada por sua reputação de uso das drogas mais recentes” (15).

Longe de negar esse papel, os médicos o abraçaram, posto que ele legitimava sua posição de status social e de alto valor comercial. Assim, tomando para sio o papel de publicitários, a AMA, junto com a Sociedade Francesa de Medicina e a empresa farmacêutica Smith Kline, criaram em 1951 (mesmo ano em que os médicos tornaram-se os monopolizadores da prescrição de diversos remédios) um programa de televisão, The March of Medicine (A Marcha da Medicina) para divulgar os “espetaculares avanços” dos seus produtos. A imprensa em seu conjunto divulgava o que era passado pela própria indústria. Para que tenhamos uma ideia das cifras dessa “parceria comercial”: a receita da indústria farmacêutica ultrapassou um bilhão de dólares em 1957; a renda dos médicos duplicou entre 1950 e 1970; a receita proveniente de propagandas de remédios em publicações da AMA saltou de 2,5 milhões de dólares em 1950 para 10 milhões de dólares em 1960, e uma resenha dessas publicações em 1959 afirmou que 89% dos anúncios não trazia informação sobre seus efeitos colaterais (16).

Foi isso que garantiu o instantâneo sucesso da venda das drogas psiquiátricas, muito distante de qualquer tipo de consideração teórica ou clínica, de qualquer tipo de preocupação com a segurança ou modo de ação dos remédios sobre os pacientes. A imprensa se encarregou de popularizar os produtos, botando lenha na fogueira do nascente capitalismo psicofarmacêutico. O Miltown (meprobamato) foi o maior estouro de vendas, uma vez que ele era utilizado para acalmar a ansiedade, e não para pacientes psicóticos graves ou deprimidos (que eram raros nessa época pré-iatrogenia psicofarmacológica). Surgiram aí termos tão utilizados para a venda desses produtos, como “a pílula da felicidade”, termo utilizado pela revista Changing Times para descrever o Miltown (17). Começaram nessa época também as extravagantes propagandas em eventos médicos, como o caso em que a Wallace Laboratories, produtora do Miltown, pagou 35 mil dólares a Salvador Dalí (cuja esposta era uma usuária de Miltown, diga-se de passagem) para que esse fizesse uma instalação em uma convenção da AMA como forma de publicidade. Whitaker relata em seu livro, “Os participantes entravam num túnel escuro e gerador de claustrofobia, que representava o interior de uma lagarta – seria essa a sensação da ansiedade –, e ao emergirem de novo na luz deparam com uma dourada ‘borboleta da tranquilidade’, metamorfose que se devia ao meprobamato” (18).


Instalação feita por Dalí como propaganda do Miltown sob encomenda da Wallace Laboratories.

Essa pesada artilharia publicitária não apenas ajudou a vender essas drogas cujos efeitos psíquicos eram absolutamente desconhecidos, mas também obteve a mudança de seu próprio status: quando lançados, a clorpromazina era tida como um “tranquilizante potente”, o meprobamato um “tranquilizante leve” a iproniazida um “estimulante psíquico”. Não se falava em nenhum deles como “cura”. Isso mudou rápido: logo os termos “antipsicótico” e “antidepressivo” foram cunhados, associados à ideia de que às drogas corrigiam “desequilíbrios químicos no cérebro” e, portanto, “curavam”.

Notas:

1- Entrevista com Robert Whitaker: https://www.youtube.com/embed/5VBXWdhabuQ

2- Robert Whitaker. "Anatomia de uma Epidemia". Editora Fiocruz, 2017. pp. 24-25.

3- Maria Rita Kehl. "O tempo e o cão". Boitempo Editorial. pp. 51-52.

4- Idem.

5- Whitaker, op. cit., p. 25.

6- op. cit., p. 27.

7- op. cit., p. 59.

8- idem.

9- idem.

10- Andrew Solomon. "O Demônio do Meio-dia". p. 151.

11- Op. cit., p. 152.

12- Whitaker, op. cit., p. 65.

13- op. cit., p. 66.

14- op. cit., p. 67-68.

15- op. cit., p. 69.

16- op. cit., p. 72

17- op. cit., p. 73.

18- op. cit., p. 74.


domingo, 14 de junho de 2020

Os 164 anos de Freud e a revigorada atualidade da psicanálise em tempos de crise e pandemia



Em tempos de pandemia, completamos nesse dia 6 de maio os 164 anos de nascimento do fundador da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud. Na era dos coachs e da psicofarmacologia com as promessas de “curas” pela regulação de neurotransmissores, a exploração do inconsciente e da nossa posição subjetiva continua sendo uma pedra fundamental para entender e transformar o indivíduo e o social.

O número de vezes que a psicanálise foi declarada “morta” é infindável, se equiparando talvez apenas às incontáveis vezes que também tentaram “enterrar” o marxismo. O que poderia parecer uma coincidência fortuita não é. Karl Marx comemorou 202 anos de nascimento dia 5, e no dia seguinte foi a vez dos 164 anos de Sigmund Freud. Duas teorias que, por diferentes vias, incomodam pilares estruturantes de uma sociedade capitalista que – hoje já podemos dizer com todas as letras e difícil será para quem queira contestar – está em franca decadência.

É velha conhecida de quem procure anedotas sobre a psicanálise e suas origens a história de que Freud a situava como um dos três grandes abalos ao narcisismo humano: Copérnico havia tirado a terra do centro do universo revelando sua condição como apenas mais um planeta no cosmos; Darwin havia tirado o homem do centro da criação ao dizer que o homem era apenas um animal, fruto da evolução e descendendo dos macacos antropoides; e Freud, sem falsa modéstia, dizia ter promovido o terceiro abalo ao relevar que o Eu “não é senhor em sua própria casa”, sendo nossa mente governada pelo inconsciente, do qual muito pouco sabemos.

A metáfora é discutível, mas considero-a válida. Acredito, contudo, que falta aí outro abalo decisivo, desferido pelos criadores do materialismo histórico-dialético, Karl Marx e Friedrich Engels, que, dentre outras coisas, demonstraram que não são as “nobres ideias”, nem o “espírito absoluto”, ou Deus, que governam nosso destino, mas sim as condições materiais que, em última instância, determinam nossas concepções de mundo; ou ainda, que o capitalismo, essa forma social tão avançada, era pai de suas próprias contradições e de seus coveiros, os trabalhadores, e estava destinado, como qualquer outra forma social precedente, a desaparecer. E que o todo poderoso capitalista não era mais do que a corporificação do verdadeiro senhor dessa sociedade, a força social impessoal chamada Capital. Ao desvelar o movimento da história, Marx e Engels também elucidaram que “tudo que existe merece perecer”.

Se é fato que a psicanálise ainda pôde ser muito mais facilmente “domesticada” do que o marxismo, por não ter em si explicitamente a indicação de que era necessário derrubar pela força organizada de uma classe subalterna todo o edifício do Estado, fazendo voar pelos ares a propriedade privada e a ideologia que a sustenta, isso não quer dizer que não foi também combatida por diversas vias, inclusive “de dentro”, com teorias que “limpavam” os aspectos incômodos das descobertas freudianas, extirpando seu potencial transformador e crítico e fazendo da psicanálise mais uma psicologia adaptativa, como, por exemplo, na célebre teoria conhecida como Ego-psychology (psicologia do Ego) que frutificou como uma deturpação estadunidense da psicanálise muito condizente com o “american way of life”. Essas doutrinas derivativas sobrepujavam a importância do Eu sobre o inconsciente, tomando como objetivo de seu trabalho o reforço daquele – uma instância psicológica que, por sua natureza, é alienada aos desígnios de um “outro” social – criando assim, como sintetizou Elisabeth Roudinesco, “uma verdadeira religião da felicidade e da integração” ao ter como meta o reforço do Eu como recurso adaptativo às demandas sociais. Mas também o marxismo, em suas versões “acadêmicas”, não escapou ao triste destino de se ver apresentado em uma versão “epistemológica” e sem seu gume revolucionário.

Pandemia, capitalismo e saúde mental

Não queremos aqui falar de história, e sim do terrível hoje: com a pandemia como catalisador, vemos eclodir uma crise social e econômica – cujos profundos reflexos políticos ainda estamos por ver – de proporções monumentais. E as duas teorias declaradas mortas sacodem de si a poeira das calúnias e vilipêndios para mostrar em alto e bom som a sua fulgurante atualidade.

Que em meio à pandemia que mata centenas de milhares, governantes e capitalistas venham a público tentar nos convencer que o melhor a fazer é reabrir normalmente os comércios e “esperar a morte” em nome de seus lucros é um atestado acabado da falência do capitalismo como sistema social onde qualquer tipo de valorização da vida humana possa ser mantido.

E, se na economia a pandemia não fez um “pouso tranquilo”, chegando abruptamente em um terreno de contradições profundas que se agravavam desde 2008, pelo menos, na subjetividade das populações que a enfrentam não foi diferente. O capitalismo não arruína os trabalhadores apenas economicamente e debilita sua saúde física, mas também degrada seu psiquismo por inúmeras formas – e não apenas os trabalhadores, mas a população como um todo, ainda que de formas muito desiguais.

Para ficarmos apenas com um índice que revela a profundidade desse problema, a OMS estima em 450 milhões o número de pessoas com alguma patologia psíquica. Em que pese que todos os termos envolvidos nessa conta – como a definição de “doença mental”, seus diagnósticos e sintomas, por exemplo – devam ser amplamente questionados, o número é expressivo de que há algo que não vai bem com a sociedade. Um número talvez mais expressivo e menos questionável é o de que 800 mil pessoas se suicidam por ano no mundo, uma a cada 40 segundos; um fato que tratamos brevemente aqui e aqui. O capitalismo contemporâneo criou uma pandemia de doenças mentais e de suicídios, e esse é um fato incontestável.

Contudo, esse número alarmante se refere ao capitalismo contemporâneo em tempos “saudáveis”, e, em meio à pandemia, tudo piora. Previsões já falam no dobro de suicídios no Chile em 2020, num país em que esta já era a maior causa de morte na faixa etária de 20 a 25 anos e a segunda maior dos 15 aos 19 (seria coincidência que este país foi o “modelo” do neoliberalismo latinoamericano?). Nos EUA, os casos de depressão e ansiedade já crescem, e se prevê uma crise na saúde mental no país; na Itália também foram noticiados suicídios decorrentes da pandemia, incluindo o de duas enfermeiras. Aliás, a verdadeira barbárie que é a gestão capitalista da pandemia se mostra particularmente entre trabalhadores da saúde, onde vemos consequências como o suicídio de uma médica estadunidense, ou as três “quedas inexplicáveis” de médicos russos submetidos a condições absurdas de trabalho na linha de frente do combate ao coronavírus.

É claro que o isolamento e o medo do contágio, entre outros fatores decorrentes da própria pandemia, podem ser desestabilizadores e nocivos para o psiquismo, mas muito mais grave é o fato de que em nossa sociedade, regida pelo lucro, a vida das pessoas é carne-de-canhão para os patrões e o Estado, e isso se mostra de forma muito mais crua e perversa em um momento como esse. Desemprego em massa, miséria, mortes em larga escala pela ausência de testes, com corpos sendo enterrados em valas e sequer a possibilidade de uma cerimônia fúnebre são apenas alguns dos fatores que podem afetar psiquicamente as pessoas e que não são consequências do vírus, mas sim de uma sociedade que não coloca em primeiro lugar as vidas humanas em risco.

São os neurotransmissores?

Parece que tudo ao nosso redor demonstra o quanto o dogma repetido à exaustão pela “ciência” médica de que são as desregulações bioquímicas de neurotransmissores as verdadeiras causadoras do mal-estar psíquico. Essa tese (sobre a qual tratei mais a fundo aqui) foi por décadas a pedra-de-toque das críticas da psiquiatria para afirmar que a psicanálise estava superada e o inconsciente era “balela”. Tudo se resolveria com psicofármacos, que consertariam os nossos desequilíbrios bioquímicos causadores de problemas que iam da ansiedade e depressão à esquizofrenia. E, se nos primeiros anos após a introdução do uso de remédios psiquiátricos houve algum nível de imbricação entre as duas disciplinas – em particular porque nos EUA e muitos outros países uma parte importante da “domesticação” da psicanálise havia consistido em impor que apenas médicos pudessem ser psicanalistas, contrariando o que Freud sempre defendeu (Cf. “A questão da análise leiga” de 1926) – o inevitável afastamento foi se consolidando conforme a psicofarmacologia ganhava peso e corpo.

A “vitória final” sobre a psicanálise se deu com a publicação da terceira edição do DSM (Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders) em 1980, a “bíblia” estadunidense para os psiquiatras, classificando diagnósticos e tratamentos, como um grande “manual de instruções” para os médicos. A própria noção de que um manual estatístico de diagnósticos possa balizar o manejo de um tratamento psíquico é radicalmente avessa às concepções psicanalíticas, que procuram fazer aflorar na relação transferencial entre analisante e analista o que está recalcado no inconsciente, dando-lhe um tratamento simbólico por meio da linguagem. Mas na terceira edição do DSM a ideologia de um manual “a-teórico”, e, portanto, “objetivo”, com diagnósticos baseados em listas de sintomas, finalmente triunfou decisivamente, excluindo todas as categorias psicodinâmicas (relacionais) e as etiologias (modelos causais) das doenças, e aferrando-se ao modelo fisicalista compatível com a “comprovação de eficácia” dos ensaios clínicos randomizados – que têm por trás o interesse nada inocente da bilionária indústria farmacêutica.

Mas não há “estatística” possível de estabelecer uma conduta ou tratamento adequado em uma relação que é de qualidade e não de quantidade. Explico-me: na ideia do DSM – que se aferra a uma concepção positivista, ou, na melhor das hipóteses, fenomenologista de ciência – se estabeleceria um tipo de “objetividade” e “universalidade” do diagnóstico e tratamento ao classificar as patologias a partir de sintomas e propugnar um tratamento único para elas – baseando-se na risível afirmação de que não estariam fundamentados em nenhuma teoria sobre o psiquismo, mas apenas em “fatos”. Assim, de uma “lista de sintomas” se poderia aferir, a partir da manifestação de uma determinada quantidade deles, se um paciente tem ou não uma doença, e em seguida passar ao tratamento “adequado” estabelecido pelo manual.

Na psicanálise, contudo, não é a eliminação de um sintoma o que importa: ele é, como um sonho ou um ato-falho, um hieróglifo que precisa ser decifrado no ato interpretativo que se estabelece na relação entre analisando e analista. Diferente do médico, o analista não se defronta com um “paciente” sobre o qual seu saber opera como o cinzel de um escultor sobre um passivo bloco de mármore, mas com um agente, um analisando que é sujeito de sua própria investigação psíquica, e que, estabelecendo uma conexão entre sintomas, lembranças, sonhos, ideias, tentará, num trabalho arqueológico realizado em parceria com o analista, estabelecer relações, nexos e sentidos para as manifestações do inconsciente – entre elas os sintomas – que nos chegam como sinais de fumaça. Assim, um sintoma não é um signo fechado, cujo sentido está estabelecido por um manual. Numa analogia, tomar um sintoma como “desânimo” como um índice fechado de uma lista de sintomas, tal como no DSM, seria como tentar interpretar um sonho com um “manual dos sonhos”, que me diga “borboleta amarela significa morte”. A borboleta amarela de meu sonho terá um sentido radicalmente daquela de outro sonhador, porque ela está ali como uma metáfora de um sentido que precisa ser desvendado: o que é aquela borboleta amarela neste meu sonho?

O psiquismo é social

Nesse sentido, a resposta da psicofarmacologia e das teorias que a sustentam é de um profundo potencial iatrogênico (causador ou agravador de doença). Os sintomas, sendo os “sinais de fumaça” do incêndio que está ocorrendo abaixo da “superfície psíquica”, pedem que se “puxe” eles, como um fio num novelo de lã, para que possamos ir chegando no que está além dele. Os remédios, quando tratados como algo mais do que um paliativo, ou seja, quando tomados como cura para um problema cuja origem é supostamente bioquímica, apenas “tapam o sol com a peneira”: dispersam a fumaça, e deixam o fogo correr solto. O resultado, como muitas vezes se vê – inclusive documentadamente, como trato no artigo supracitado – é que a médio e longo prazo há um prognóstico muitas vezes pior do que para pessoas sem nenhum tipo de tratamento, além do estabelecimento de uma dinâmica de dependência dos remédios. Nada melhor, do ponto de vista empresarial: todos que lidam com a indústria farmacêutica conhecem o mandamento de que é mais lucrativo um cliente vitalício do que um paciente curado.

Há uma boa parte dos psicanalistas – quiçá a maioria – que trata da relação transferencial, do inconsciente e dos problemas psíquicos, como se fossem um tema pertencente ao âmbito restrito às quatro paredes de um consultório; em geral, diga-se de passagem, num bairro nobre e com consultas a preços que não raramente chegam ao valor do salário de um trabalhador precário. É mais uma forma de fazer o potencial explosivo da psicanálise caber “adequadamente” numa sociedade de mercadorias – onde, aliás, ela nasceu e se reproduziu até hoje.

Mas já em Freud se apontava um sentido muito mais profundo e abrangente das descobertas psicanalíticas. Obras tão precoces como Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) já demonstravam cabalmente que a sociedade é geradora do mal-estar psíquico, e que isso está associado a valores morais, preceitos, condutas. Nesse texto, por exemplo, Freud denunciou a “dupla moral” que permitia ao homem satisfazer suas necessidades sexuais em relações extraconjugais antes e durante o casamento, enquanto à mulher a monogamia é estrita. Ao longo de sua obra desenvolve uma visão que se pauta na lógica de um “contrato social”, onde as pulsões mais primitivas e antissociais – nomeadamente, da agressividade e da sexualidade – seriam reprimidas em benefício da civilização e em nome da possibilidade de convívio mútuo. Contudo, ainda que Freud estivesse longe de enxergar a divisão social do trabalho e a divisão da sociedade em classes, com a propriedade privada e o capital como fundamentos da exploração do homem pelo homem, em momentos de extrema agudeza crítica ele apontou para o fato de que tal repressão não se dá igualmente entre todo os membros de uma sociedade. Em O futuro de uma ilusão (1927) ele vai ao ponto de dizer que uma sociedade fundada na desigualdade não merece se perpetuar:

Quanto às limitações que se aplicam apenas a classes determinadas da sociedade, nos deparamos com condições graves e também jamais ignoradas. É de se esperar que essas classes desfavorecidas invejem as vantagens das privilegiadas e façam de tudo para se livrar de seu próprio acréscimo de privações. Quando isso não for possível, uma medida constante de descontentamento se imporá dentro dessa cultura, o que pode levar a rebeliões perigosas. Se, porém, uma cultura não conseguiu ir além do ponto de que a satisfação de certo número de seus membros tenha como pressuposto a opressão de outros, talvez a maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, é compreensível que esses oprimidos desenvolvam uma hostilidade intensa contra a cultura que por meio de seu trabalho eles mesmos possibilitam, mas de cujos bens lhes cabe uma cota muito pequena. (...) Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito um número tão grande de membros e os incita à rebelião não tem perspectivas de se conservar perpetuamente, nem o merece. (FREUD, 1927, p. 29-30)

Assim, muito contrariamente ao que alguns dos que se reivindicam herdeiros de sua teoria fazem, Freud via que “A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode nos parecer muito significativa, perde muito de sua nitidez ao ser examinada mais a fundo.”, já que considerava que “Na vida psíquica do indivíduo, o outro entra em consideração de maneira bem regular como modelo, objeto, ajudante e adversário, e, por isso, desde o princípio, a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social nesse sentido ampliado, porém inteiramente legítimo” (FREUD, 1921, p. 35).

Coronavírus, esgarçamento social e a extrema-direita

Em tempos de pandemia e uma crise orgânica em que os de cima já não podem governar como antes e se encontram sem um projeto claro que os unifique, nem os de baixo têm condições políticas para derrubá-los, a psicanálise não é desprezível para entendermos a recomposição do jogo social. Vladimir Safatle, por exemplo, é um intelectual que – em que pese os desacordos com suas conclusões como a necessidade de defesa do impeachment como saída de “soberania popular” para a crise política – resgata de maneira muito fértil o pensamento psicanalítico, e particularmente o freudiano, para tentar compreender a dinâmica política atual.

Dentre os grandes revolucionários marxistas, Trótski é provavelmente o que deu mais atenção para a fundamental questão da psicologia das classes e das massas, intimamente atrelada às condições sociais e políticas, como um fator de primeira importância política. Não à toa, também foi um dos dirigentes bolcheviques que via com simpatia a psicanálise e ajudou a que ela encontrasse incentivo do Estado operário revolucionário para se estabelecer na União Soviética (sendo posteriormente proibida como “ciência burguesa” e banida por Stálin). Textos como Teses sobre revolução e contrarrevolução ou Questões sobre o modo de vida são obras-primas de análise da psicologia das massas em um processo revolucionário. Em outros trabalhos analisou a psicologia da burocracia que usurpou o Estado operário em benefício próprio. Em seus textos dedicados à análise da ascensão do fascismo na Alemanha, Trótski trata da psicologia das massas da pequena-burguesia arruinada que se tornam a base social sobre a qual prolifera o lodo do fascismo, até se tornar um movimento de massas a serviço do capital financeiro e voltado à destruição das organizações operárias. Sem dúvida, não há explicação melhor do que as do revolucionário russo para os fatores econômicos, sociais e políticos que fazem do fascismo – que nos dias “de paz” tem tão pouca adesão – um movimento de massas durante crises sociais agudas do capitalismo. Mas é fundamental pensar nas contribuições psicanalíticas também para entender especificamente os mecanismos psicológicos que dão a coesão a uma massa.

Cenas como a de pessoas que, em uma impressionante negação de fatos evidentes da realidade, seguem seu líder Bolsonaro para as “marchas da morte”, ou que se ajoelham nas ruas rezando em devoção como fanáticos, nos revelam que os mecanismos de identificação apontados por Freud (particularmente em Psicologia das massas e análise do Eu) são muito poderosos, estabelecendo uma relação dialética com as motivações sócio-econômicas que criam esses movimentos políticos. A desagregação do tecido social com pandemia e crise econômica, e a crise orgânica no campo político, oferecem um terreno fértil para que surja uma figura messiânica como Bolsonaro, que, ao ocupar o lugar simbólico de “pai”, ao oferecer a seus adeptos um inimigo definido claro sobre os quais de projetar a culpa por todas as desgraças (o “PT”, “Lula”, os “comunistas”, as “feministas”, os “intelectuais”, etc.) permite criar uma coesão muito forte entre seus adeptos. Freud descrevia esse processo como o de uma infantilização, em que os membros dessa massa se assujeitam e colocam nessa figura de líder a possibilidade de sua salvação; por isso, estão dispostos a obedecê-lo cegamente e a abrir mão de seu próprio julgamento, tornando sua adesão cega e acrítica – a ponto, por exemplo, de acreditar que é só uma “gripezinha” a despeito de dez mil mortes e a cada dia mais – pois o “pai” sabe sempre o que é melhor para seus filhos. De fato, morrer por ele pode ser uma prova de amor.

Também nos ajuda a compreender porque a sempre evidente estupidez fanfarrona e grosseria de Bolsonaro o tornam, de forma aparentemente paradoxal, ainda mais adequado a esse papel. Em primeiro lugar, reforça o elemento de identificação porque, mesmo ocupando o lugar de pai, ele aparece como “um de nós”, e fala aquilo que muitos pensam, faz aquilo que muitos querem, mas que é proibido aos demais. A sua baixeza aparece travestida de desafio a uma ordem que seria imposta, e o líder se torna a própria encarnação da Lei – a manutenção dessa ordem assim aparece vista como subversiva e radical. Assim, para Bolsonaro é fundamental se mostrar como “perseguido pela imprensa”, vítima da Folha ou da Globo, que seriam comunistas. É um traço comum, aliás, aos líderes da extrema-direita, que em sua retórica se diziam “inimigos dos ricos” e “defensores do povo”. É como se Bolsonaro canalizasse, quando fala as coisas mais abjetas, o desejo de transgressão da ordem para a manutenção dessa mesma ordem, só que representada pela sua própria pessoa e contra as instituições. Todas as injustiças e privações que a sociedade capitalista efetivamente impôs sobre grande parte de seus apoiadores se corporificam nos culpados apontados por ele, e o próprio Bolsonaro como aquele que saiu do meio de “nós” para fazer a justiça. Posta-se assim como um bonaparte, e, para seu séquito cumpre esse papel de líder, pai, e mestre, aparecendo, no entanto, como “um de nós” em oposição às instituições.

Em meio à pandemia, Bolsonaro redobrou essa aposta, e se vê como em sua intenção nem tão velada de querer “ser” o “novo AI-5” e encarnar em si a ordem, ele procura sempre se mostrar como a vítima de uma “velha ordem”, representada pelas instituições do Estado como STF, parlamento, etc. Em nada muda para essa construção ideológica o fato de que enquanto faz essa retórica ele costure sua aliança com o Centrão; exceto, é claro, para aqueles que escolheram como seu “messias” outro candidato a bonaparte, Sérgio Moro. E mesmo em seu discurso após a demissão de Moro, Bolsonaro reforçou essa sua apresentação como uma “vítima” de “poderes do sistema”, no caso a PF dirigida por Moro.

Entender esses mecanismos de identificação, como opera o discurso e os mecanismos psíquicos de construção de uma massa coesa não podem jamais substituir a análise política, econômica e social concreta de uma determinada situação para podermos compreender a dinâmica complexa entre classes e frações de classe; nesse erro caem aqueles que muitas vezes “psicologizam” excessivamente as análises políticas, dando peso desmedido a fatores como esses sem ver que eles podem ser alterados. Contudo, sem entender a relação dialética desses mecanismos psíquicos com fatores econômicos, sociais e políticos, muitas vezes é difícil explicar completamente uma adesão tão profunda de setores populares e de parcelas expressivas da classe trabalhadora a um projeto político que é tão radical e explicitamente oposto a seus interesses; e é mais difícil ainda pensar como atuar para combater os fatores que favorecem essa adesão.

Nesses 164 anos de Freud, essa reflexão breve e, obviamente, muito parcial, tem como objetivo apenas dizer que a psicanálise continua viva e imprescindível para podermos pensar em profundidade a subjetividade humana, seja individualmente, seja socialmente.

Obras citadas:

- FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: L&PM Pocket, 2013. Retour ligne manuel
- ___________. O futuro de uma ilusão (1927). São Paulo: L&PM Pocket.