domingo, 30 de novembro de 2014

Entrevista com Paulo Amarante, psiquiatra

(Não concordo integralmente com as posições expressas, mas sem dúvida é uma leitura importante e esclarecedora.)

Entrevista feita pela Revista Rádis

Desde o início da década de 1970, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante, acompanha de perto as mudanças no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Mais do que isso, participa ativamente dessas mudanças, como um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a instituições, como ele mesmo afirma, Paulo orientou-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. “David Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta entrevista à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da reforma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. E defende uma reforma da cultura. “É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro”.
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Amarante: “SUS perdeu espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório. Queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços”.
Como surgiu seu interesse pela psiquiatria?
Começou cedo, durante a faculdade [de Medicina], porque meu irmão já era psiquiatra. Meu pai brincava que a Reforma Psiquiátrica era uma briga minha com meu irmão, já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual sou um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma aversão muito grande às instituições. Fui do diretório acadêmico, do movimento estudantil secundarista, fui expulso do colégio… Aliás, tenho uma história longa de expulsões; na escola, por causa do movimento estudantil e porque escrevia um jornalzinho com questionamentos, denúncias de situações do colégio, em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil para mim ser enquadrado.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Botelho, onde travou seu primeiro contato com a Psiquiatria?
Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto grande. Na época havia 800 internos, em uma instituição que talvez não pudesse acolher adequadamente nem a metade disso. Muito mau cheiro, ausência de condições mínimas de habitação, descaso, boa parte dos pacientes nus – isso era comum em hospitais e um dos argumentos era que os pacientes não gostavam de usar roupa, uma verdade, depois de tantos anos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega, João Batista Magro, que também éramos músicos, começamos a reunir os internos para ouvir música, quando ainda não se falava em musicoterapia. Então, fui chamado por um diretor, que disse não ser digno para um médico tocar violão em uma instituição, que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi que falta de seriedade era aquilo que acontecia no hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas, mal cuidadas.
A atividade com música foi intuitiva ou já estavam influenciados por autores?
Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido, mas dentro da faculdade certamente não – não se tocava e ainda não se toca praticamente no nome desses autores. Quando apresentei o trabalho de conclusão da minha especialização em 1978, no Rio, fui advertido por estar usando autores contrários à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas. Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa de ser supostamente homossexual. Como não havia ninguém para dar lhe alta e, depois, sob o argumento de que não poderia ser cidadão responsável, ficou décadas internado. Também fiz um filme sobre ele, um dos primeiros sobre loucura. O contato com os autores aconteceu quando vim para o Rio, na Uerj, e trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde nos reuníamos em grupos de estudos.merdicalizacao 2
Veio para o Rio imaginando que aqui seria diferente?
No último ano da faculdade, em 1976, vim fazer o internato no Rio com essa expectativa. O primeiro contato com o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ] não foi ruim. Era uma clínica universitária, com 30 leitos, 15 femininos e 15 masculinos, aquele padrão de enfermaria, com prédio administrativo no meio – sempre houve nessas instituições a preocupação de que os pacientes não fizessem sexo. Eram pacientes de livro, como a gente chama na Medicina, pacientes clássicos: a paciente com sífilis cerebral, o paciente esquizofrênico paranoico com delírio místico. Moravam no hospital porque eram pacientes de aula: quando tinha aula do tema, eles eram levados para a sala, sem qualquer constrangimento.
Se o paciente melhorasse, atrapalhava…
Se tivesse alta, acabava a aula. Alguns citavam os próprios sintomas, já tinham as aulas decoradas. A professora perguntava: “A senhora ouve vozes?” E a paciente respondia: “Ouço, sim, estou ouvindo a voz da senhora”.
A psiquiatra Nise da Silveira trabalhava no hospital nessa época. Havia afinidade entre vocês?
Ela trabalhava em outra linha. Era psiquiatra, mas odiava psiquiatras, como gostava de dizer. E eu respondia: eu também, para provocá-la. A Nise acreditava que o psiquiatra era irrecuperável, e tínhamos que mostrar que estava errada. Os primeiros questionadores da psiquiatria foram psiquiatras: Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper, Thomas Szasz, Aaron Esterson. No Brasil, também: eu, Pedro Gabriel, Ana Pitta, Jairo Goldberg, todos psiquiatras na fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Era preciso criar uma outra psiquiatria, não uma antipsiquiatria – Basaglia dizia que o termo antipsiquatria podia dar margem a incompreensões. Ele procurava fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. A psiquiatria errou por focar na doença, fato abstrato, que tomou como fato objetivo, concreto, no modelo das ciências naturais. Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito. Nise chegou a buscar pesquisas demonstrando que nossa linha de trabalho estava equivocada. Nós dávamos alta aos pacientes e ela dizia que  eles não tinham preparo para a vida social, que seriam vítima de violência, abuso. A internação representava um certo cuidado, na visão dela. Existem pessoas do campo da reforma psiquiátrica que têm esse pensamento, mas instituição nunca é proteção; favorece mecanismos de violência, controle, perda de autonomia.
O que os levava a defender a internação?
A pesquisa mostrou que, quando aumentávamos as altas, aumentavam também as reinternações, e o dado estava correto. Por isso, tivemos a preocupação de criar uma rede forte de suporte externo, não só de serviço de saúde, mas também familiar. Nise teve papel importante, porque mostrava que outras formas de trabalho eram efetivas. Ela marcou por se recusar a aplicar eletrochoque, por não acreditar que medicação era o grande tratamento. Mas tivemos que tensionar com ela, porque isso tudo poderia ser feito também fora dos hospitais. No final da vida, ela nos apoiou.
Como era a conjuntura nessa época pré-mobilização dos trabalhadores de saúde mental?
De 1976 em diante, começou a haver um movimento de mudança no sindicalismo médico e no conselho de Medicina no Rio. Um exemplo foi a criação do Reme, Renovação Médica, em que médicos questionavam a medicina. Faziam parte nomes importantes, como Carlos Gentile de Mello, que denunciava a mercantilização da saúde, e outros mais jovens, como Sergio Arouca e Reinaldo Guimarães. No mesmo ano, fiquei sabendo que haveria uma reunião para fundar um centro de estudos de saúde, e se criou o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos em Saúde]. De uma vez só, conheci [José Gomes] Temporão, Arouca, Reinaldo [Guimarães], Eleutério  Rodriguez Neto, Eric Jenner, Hésio [Cordeiro]. Sempre gostei de escrever, tinha uma máquina portátil, como se fosse o notebook de hoje, e logo me viram como redator do grupo. Tenho comigo o projeto original do SUS – A questão democrática na área da saúde –, que levamos ao simpósio na Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. E apresentei no mesmo dia o documento Assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado, o primeiro da reforma psiquiátrica brasileira. Dentro do Cebes, surgiu a ideia de se criarem núcleos de saúde do trabalhador, saúde da mulher e saúde mental – fiquei responsável por este último. Era um cenário muito favorável, chegamos a ganhar o Conselho de Medicina por um período.
Como se deu sua demissão da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), junto a dois colegas, episódio que se tornou marco do movimento?
Em 1978, comecei a trabalhar na Dinsam e notei ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos internos, violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros pacientes). Investigamos e as conclusões deram muito problema. Outra denúncia era da existência de presos políticos em hospitais psiquiátricos, inclusive David Capistrano, pai, um dos fundadores do Partido Comunista – e existem fortes indícios de que era ele mesmo. Havia médicos psiquiatras envolvidos em tortura e desaparecimento de presos políticos – a Colônia Juliano Moreira [no Rio] tinha um pavilhão onde só entravam militares. Fui chamado na sede da Dinsam e demitido, com mais dois colegas. Oito pessoas, entre elas, Pedro Gabriel Delgado e Pedro Silva, organizaram um abaixo-assinado em solidariedade a nós. Depois, mais 263 pessoas foram demitidas. Isso caracterizou um movimento. Conseguimos manter a crise da Dinsam, como chamávamos, na imprensa por mais de seis meses. 
E essa discussão ganhou corpo…
Em 1978, dois eventos importantes aconteceram, um deles, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de outubro, em Camboriú (SC). Era um evento clássico de Psiquiatria. Nós nos reunimos em um grupo e o invadimos. Já havia uma articulação em rede: em Minas Gerais, o João Magro; na Bahia, Naomar de Almeida Filho e Luiz Humberto, que depois foi deputado federal; Ana Pitta, em São Paulo. Um médico conhecido, já idoso, Luiz Cerqueira, que deu nome ao primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no Brasil, levantou questão de ordem para que o congresso reconhecesse a importância do nosso movimento, e esse ficou conhecido como o congresso da abertura. No Rio, houve o 1º Simpósio de Políticas, Grupos e Instituições, organizado por Gregorio Baremblitt e Chaim Samuel Katz, dois psicanalistas que vinham rompendo com a psicanálise, até então restrita aos médicos. Eles trouxeram para a discussão Franco Basaglia, Thomas Szasz, Erving Goffman,  David Cooper, Ronald Laing e Shere Hite, com grande destaque na imprensa.
A comunicação está sempre presente nas suas respostas — cobertura da mídia comercial, denúncias da mídia alternativa, experiência pessoal com comunicação e saúde, a apropriação por grupos de pacientes…
Sempre gostei de escrever. Criei logo um jornalzinho do movimento, com letras recortadas e coladas uma a uma para formar os textos, porque não tinha equipamento. Como eu estava proibido de entrar em qualquer hospital da Dinsam, ia para a porta distribuir o jornal. Buscamos a apropriação dos meios pelos pacientes, como parte do entendimento de que eles são sujeitos, atores políticos. Daí a ideia de experiências como a TV Pinel [no Rio de Janeiro], a rádio e a TV Tan Tan [em Santos]. Muitos profissionais ainda trabalham a partir da concepção de que fazer jornalzinho é terapia, e não é. É intervenção política, de cidadania, são outras formas de mostrar o mundo, de pensar a diversidade. Hoje existem vários jornais impressos, tevês e rádios comunitárias, com nomes muito criativos, como Antena Virada, TV Parabolinoica e Rádio Delírio Coletivo. São iniciativas importantes, que constroem uma outra noção de identidade desses sujeitos.
Quando se deu sua vinda para a Fiocruz?
Fui convidado várias vezes, mas recusava. O Arouca me chamou em 1982, para trabalhar em planejamento, e eu não conseguia me soltar da saúde mental. Trabalhei com o Arouca quando ele assumiu a secretaria de Saúde do estado do Rio [em 1987], com a tarefa de abrir 33 centros de saúde mental. Quando deixou o cargo, ele e Sonia Fleury me convidaram a criar um núcleo de saúde mental na Fiocruz e aceitei. A Sonia tinha acabado de lançar Reforma sanitária: em busca de uma teoria e, em analogia, eu escrevi Reforma psiquiátrica: em busca de uma teoria. Eu falava que não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”. Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém sujeitos. É um desafio dos Caps ainda hoje. Deslocam a tutela para tecnologias menos violentas e invasivas, mas ainda tutelam. Há muita dificuldade em aceitar que as pessoas são diferentes e devem ser diferentes. Minha luta atual é que se pode até suspender a medicação. Isso para médico é um absurdo: eles não acreditam que se possa ser um psicótico sem tomar antipsicótico. É um mito que a indústria farmacêutica criou, que só há um jeito dele se manter vivo, tomando remédio.
O movimento pedia a superação do modelo psiquiátrico. Isso parcialmente se deu na assistência, mas a medicalização continua.menos capsulas
Há uma confusão sobre a superação do modelo assistencial hospitalar asilar manicomial, que está em processo razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização, como as comunidades terapêuticas e as instituições religiosas. O Luiz Cerqueira calculava que o Brasil tinha de 80 mil a 100 mil leitos psiquiátricos no final dos anos 1970. Hoje, são em torno de 30 mil leitos. De fato, reduzimos. Criamos Caps, estamos criando projetos de residências, que já são 2 mil, projetos de economia solidária, projetos culturais. Chamamos de dispositivos de saúde mental. Mas nosso trabalho se concentrou na desospitalização. Quando falamos em desmedicalização, não estamos falando em diminuição do medicamento, e sim na diminuição do papel da medicina. Queremos diminuir a apropriação que a medicina faz da vida cotidiana, o discurso médico sobre a vida. Isso não conseguimos. Um desafio hoje da reforma psiquiátrica é a formulação discursiva muito médica. Por exemplo: as pessoas são contra o manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica. 
Como lidar com o que se chama de epidemia de depressão?
Temos que pensar até que ponto o próprio aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia — uma discussão central, que não é feita devido ao controle da produção de conhecimento pela Psiquiatria e pela indústria farmacêutica. Boa parte da chamada crise mundial de aumento da depressão é produzida pela Psiquiatria, que não está se preparando para evitar, mas para produzir a depressão. Os relatórios contribuem para que pessoas se identifiquem como depressivas. Os intelectuais orgânicos da indústria farmacêutica têm muito claro que é possível aumentar o número de diagnósticos de depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora muito? Tem ideias de morrer?”. Isso produz identificação e as pessoas não dizem que estão tristes e sim que estão depressivas. [Michel] Foucault ensinou que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a produção social da doença. 
No final dos anos 1980 começam a surgir iniciativas alternativas ao manicômio: em 1987 o primeiro Caps e, em 1989, a reforma em Santos (SP). Como se pensavam essas novas formas de cuidado?
As alternativas — ambulatórios, hospitais-dia, centros de convivência — começaram a aparecer no início dos anos 1980, quando deixamos de ser oposição e fomos para o Estado de alguma forma. Em 1987, foi criado o primeiro Caps, em São Paulo, com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia essa concepção de rede, território e integralidade. O marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. A cidade tinha sua primeira prefeita eleita democraticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela fez uma revolução na prefeitura, nas políticas públicas como um todo. Na saúde, o secretário era David Capistrano Filho, mentor intelectual do Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele levou à frente uma intervenção na clínica Anchieta, que tinha alta mortalidade. Não quis reformar, mas sim criar uma estrutura substitutiva e territorial — foi a primeira vez que apareceram essas expressões. Hoje se fala muito em rede substitutiva e territorial. A primeira gestão municipal que trabalhou com o projeto aprovado do SUS, ainda que não regulamentado, foi a de Santos. 
Como avalia a participação social nas políticas de saúde mental?
A participação está diminuindo. O SUS perdeu o espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório, e virou mais um sistema de saúde. E o mesmo aconteceu na reforma psiquiátrica: queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços. Houve redefinição do usuário, tido não mais apenas como paciente, mas que não chegou a ser o ator social que queríamos ter — é ator coadjuvante das políticas. Vai nos congressos, nos conselhos, mas não tem força.
E como está a rede de atenção psicossocial hoje?
Desde o início desse processo, levantei a preocupação com os Caps funcionando em horário comercial, descontextualizados do território, como ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma oficina de teatro dentro do Caps em vez de usar o teatro da cidade? E não basta transformá-los em Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios, quando deveriam ser a substituição. É necessário mudar as bases conceituais dos serviços: as noções de doença, terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou sem medicamento. Sempre se tem a ideia de uma normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar, apontar que a doença é do indivíduo, está nos neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e tutelar pelo resto da vida. 
Que reflexões sua doença recente, um câncer e complicações decorrentes, provocou sobre a institucionalização?
A doença me marcou muito, por minha posição anti-institucionalizante. Minha experiência com hospitais é muito negativa: a relação do aparato médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei, pela perda de autonomia, de identidade. Os profissionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei se a expressão é humanizar, porque humanização me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a mudança profunda na qualidade da relação com as pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam, as pessoas foram voltando para o atendimento clínico e eu segui com a discussão do direito à saúde. A ideia de reforma psiquiátrica é limitada, porque o que eu buscava era uma reforma da cultura. É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro. Busquei a transformação da relação da sociedade com a loucura. E mudar cultura é um processo longo, muito demorado.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Entrevista com coordenador do DSM IV


Allen Frances (Nova York, 1942) dirigiu durante anos o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve as diferentes doenças mentais. Esse manual, considerado a bíblia dos psiquiatras, é revisado periodicamente para ser adaptado aos avanços do conhecimento científico. Frances dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV, ao qual se seguiu uma quinta revisão que ampliou enormemente o número de transtornos patológicos. Em seu livro Saving Normal (inédito no Brasil), ele faz uma autocrítica e questiona o fato de a principal referência acadêmica da psiquiatria contribuir para a crescente medicalização da vida.
Pergunta. No livro, o senhor faz um mea culpa, mas é ainda mais duro com o trabalho de seus colegas do DSM V. Por quê?
Resposta. Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação.
P. Seremos todos considerados doentes mentais?
R. Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais.
P. Com a colaboração da indústria farmacêutica...
Os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos.
R. É óbvio. Graças àqueles que lhes permitiram fazer publicidade de seus produtos, os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não é assim. Os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e persistentes, que provocam uma grande incapacidade. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo contrário: o excesso de medicação causa mais danos que benefícios. Não existe tratamento mágico contra o mal-estar.
P. O que propõe para frear essa tendência?
R. Controlar melhor a indústria e educar de novo os médicos e a sociedade, que aceita de forma muito acrítica as facilidades oferecidas para se medicar, o que está provocando além do mais a aparição de um perigosíssimo mercado clandestino de fármacos psiquiátricos. Em meu país, 30% dos estudantes universitários e 10% dos do ensino médio compram fármacos no mercado ilegal. Há um tipo de narcótico que cria muita dependência e pode dar lugar a casos de overdose e morte. Atualmente, já há mais mortes por abuso de medicamentos do que por consumo de drogas.
P. Em 2009, um estudo realizado na Holanda concluiu que 34% das crianças entre 5 e 15 anos eram tratadas por hiperatividade e déficit de atenção. É crível que uma em cada três crianças seja hiperativa?
R. Claro que não. A incidência real está em torno de 2% a 3% da população infantil e, entretanto, 11% das crianças nos EUA estão diagnosticadas como tal e, no caso dos adolescentes homens, 20%, sendo que metade é tratada com fármacos. Outro dado surpreendente: entre as crianças em tratamento, mais de 10.000 têm menos de três anos! Isso é algo selvagem, desumano. Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.
P. E há tanta síndrome de Asperger como indicam as estatísticas sobre tratamentos psiquiátricos?
R. Esse foi um dos dois novos transtornos que incorporamos no DSM IV, e em pouco tempo o diagnóstico de autismo se triplicou. O mesmo ocorreu com a hiperatividade. Calculamos que, com os novos critérios, os diagnósticos aumentariam em 15%, mas houve uma mudança brusca a partir de 1997, quando os laboratórios lançaram no mercado fármacos novos e muito caros, e além disso puderam fazer publicidade. O diagnóstico se multiplicou por 40.
P. A influência dos laboratórios é evidente, mas um psiquiatra dificilmente prescreverá psicoestimulantes a uma criança sem pais angustiados que corram para o seu consultório, porque a professora disse que a criança não progride adequadamente, e eles temem que ela perca oportunidades de competir na vida. Até que ponto esses fatores culturais influenciam?
Os melhores especialistas, aqueles que honestamente ajudaram a definir a patologia, estão horrorizados. Perdeu-se o controle.
R. Sobre isto tenho três coisas a dizer. Primeiro, não há evidência em longo prazo de que a medicação contribua para melhorar os resultados escolares. Em curto prazo, pode acalmar a criança, inclusive ajudá-la a se concentrar melhor em suas tarefas. Mas em longo prazo esses benefícios não foram demonstrados. Segundo: estamos fazendo um experimento em grande escala com essas crianças, porque não sabemos que efeitos adversos esses fármacos podem ter com o passar do tempo. Assim como não nos ocorre receitar testosterona a uma criança para que renda mais no futebol, tampouco faz sentido tentar melhorar o rendimento escolar com fármacos. Terceiro: temos de aceitar que há diferenças entre as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam seus filhos, mas do excesso de medicação.
P. Na medicalização da vida, não influi também a cultura hedonista que busca o bem-estar a qualquer preço?
R. Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos há milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a adversidade e nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na Síria, a vida pode ser um inferno. E entretanto as pessoas lutam para sobreviver. Se vivermos imersos em uma cultura que lança mão dos comprimidos diante de qualquer problema, vai se reduzir a nossa capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a sociedade inteira se debilitará frente à adversidade. Além disso, quando tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade, diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre.
P. E ser rotulado como alguém que sofre um transtorno mental não tem consequências também?
R. Muitas, e de fato a cada semana recebo emails de pais cujos filhos foram diagnosticados com um transtorno mental e estão desesperados por causa do preconceito que esse rótulo acarreta. É muito fácil fazer um diagnóstico errôneo, mas muito difícil reverter os danos que isso causa. Tanto no social como pelos efeitos adversos que o tratamento pode ter. Felizmente, está crescendo uma corrente crítica em relação a essas práticas. O próximo passo é conscientizar as pessoas de que remédio demais faz mal para a saúde.
P. Não vai ser fácil…
R. Certo, mas a mudança cultural é possível. Temos um exemplo magnífico: há 25 anos, nos EUA, 65% da população fumava. Agora, são menos de 20%. É um dos maiores avanços em saúde da história recente, e foi conseguido por uma mudança cultural. As fábricas de cigarro gastavam enormes somas de dinheiro para desinformar. O mesmo que ocorre agora com certos medicamentos psiquiátricos. Custou muito deslanchar as evidências científicas sobre o tabaco, mas, quando se conseguiu, a mudança foi muito rápida.
P. Nos últimos anos as autoridades sanitárias tomaram medidas para reduzir a pressão dos laboratórios sobre os médicos. Mas agora se deram conta de que podem influenciar o médico gerando demandas nos pacientes.
R. Há estudos que demonstram que, quando um paciente pede um medicamento, há 20 vezes mais possibilidades de ele ser prescrito do que se a decisão coubesse apenas ao médico. Na Austrália, alguns laboratórios exigiam pessoas de muito boa aparência para o cargo de visitador médico, porque haviam comprovado que gente bonita entrava com mais facilidade nos consultórios. A esse ponto chegamos. Agora temos de trabalhar para obter uma mudança de atitude nas pessoas.
P. Em que sentido?
R. Que em vez de ir ao médico em busca da pílula mágica para algo tenhamos uma atitude mais precavida. Que o normal seja que o paciente interrogue o médico cada vez que este receita algo. Perguntar por que prescreve, que benefícios traz, que efeitos adversos causará, se há outras alternativas. Se o paciente mostrar uma atitude resistente, é mais provável que os fármacos receitados a ele sejam justificados.
P. E também será preciso mudar hábitos.
R. Sim, e deixe-me lhe dizer um problema que observei. É preciso mudar os hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e irritabilidade. Jantar às 22h e ir dormir à meia-noite ou à 1h fazia sentido quando vocês faziam a sesta. O cérebro elimina toxinas à noite. Quem dorme pouco tem problemas, tanto físicos como psíquicos.

El País

domingo, 16 de novembro de 2014

Considerações sobre Édipo, castração e o feminino ontem e hoje

Certamente não corremos o risco de incorrer em nenhum exagero ao afirmar que a psicanálise inaugura um novo modo de entender a sexualidade humana, rompendo antigos paradigmas e tabus de forma tão incisiva que muitas de suas descobertas – algumas das quais contam já com cerca de um século de idade – não foram completamente reconhecidas ou assimiladas pelo senso comum ou mesmo por campos bem estabelecidos da ciência, e as revelações que trouxeram ainda são vistas como imorais com uma frequência espantosa.

 Assim, a acusação de “pansexualismo” que Freud enfrentou entre seus contemporâneos – quiçá uma das mais recorrentes contra a psicanálise em todo seu percurso – continua reverberando, fundada não apenas em uma possível “falta de conhecimento”, mas, provavelmente, sobretudo na dificuldade do ser humano de encarar em si mesmo aquilo que escapa ao seu controle, que coloca em questão seus valores morais e sociais cuidadosamente erguidos em nosso ideal do eu e vigiados zelosamente por nosso Super-eu. Assim, como a ideia do inconsciente, o conceito de sexualidade tal como estabelecido por Freud apresenta a concepção de que não somos apenas aquilo que entendemos de nós mesmos, mas, fundamentalmente, aquilo que desconhecemos e sobre o qual não temos controle.

Ao longo de sua vida, Freud se apoia fortemente em sua prática clínica para embasar sua teoria metapsicológica, que procura sempre reformular para aprofundar a compreensão do psiquismo. Dessa forma, em que os conceitos antigos não desaparecem, mas são sobrepostos e reinterpretados a partir de novos entendimentos, se constrói também o entendimento da sexualidade, cuja primeira formulação de fôlego se encontra nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, texto que será muitas vezes revisitado pelo autor com acréscimos de notas e seções novas.

Um ponto fundamental que está presente desde esses ensaios e que significa uma ruptura com a antiga forma de compreender a sexualidade é a dissociação entre a finalidade reprodutiva e a sexualidade humana, associando esta à obtenção de prazer e, desta forma, expandindo imensuravelmente seus limites. Discutindo aquilo que se entendiam como as “perversões”, Freud mostra como os elementos disso estão presentes na sexualidade de qualquer ser humano, como, por exemplo, no ato de beijar, considerado completamente normal em nossa sociedade e que não possui nenhum fim reprodutivo e sequer envolve a genitália diretamente.

A segunda revolução que faz Freud é o estudo da sexualidade na infância e suas primeiras manifestações, que, como demonstra, irão marcar profundamente a subjetividade e o psiquismo de cada indivíduo, sendo determinante para toda sua história posterior. A teoria do apoio, em que Freud demonstra como o pulsional parte da necessidade orgânica, biológica, que gera uma tensão (sensação de desprazer), mas que se concretiza na satisfação dessa necessidade, que promove um relaxamento psíquico (sensação de prazer) que inscreve os caminhos pulsionais em nosso psiquismo. Caminhos que nosso desejo irá aprender a trilhar e pelos quais passará nossa libido em um movimento que procura a repetição desse prazer durante nossa vida.

É a partir da história do desenvolvimento desse psiquismo individual a partir de suas pulsões que Freud irá elaborar sua teoria do Complexo de Édipo, em que a relação da criança com sua mãe, como primeiro objeto de desejo sexual, e com o pai, como competidor, modelo e rival no campo do desejo, surgem como determinantes. Contudo, conforme Freud aprofunda sua compreensão do Complexo de Édipo ao longo de muitos anos e, em grande parte movido pelas dificuldades que traziam o entendimento do desenvolvimento da sexualidade feminina, Freud irá colocar cada vez mais fatores nessa equação. As teorias sexuais infantis, como a teoria da universalidade do pênis, a teoria cloacal do nascimento e a do caráter sádico do coito, aparecem também como elementos importantes.

O processo de compreensão de que o pênis não é universal é bastante complexo e Freud o desenvolve de maneira minuciosa, como no texto “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”, mostrando como a atribuição de um valor fálico ao pênis é determinante para o que ele denomina como o Complexo de Castração, que se dá de diferentes formas nos meninos e meninas. Naqueles, o temor de sofrer a castração é fundamental para criar a interdição do desejo incestuoso em relação à mãe e, assim, encerrar o Complexo de Édipo com a repressão de seu conteúdo e a internalização da função paterna, que será o elemento essencial da constituição do Super Eu. Nas meninas, contudo, Freud aponta que o Complexo de Castração seria o elemento inaugural do Complexo de Édipo (ou do chamado “Édipo positivo”), em que a mãe passa a ser menosprezada pela filha por não possuir o pênis (sendo este possuidor de um valor fálico) e o desejo se desloca então para a figura paterna, detentora do falo.

A partir desse processo, Freud aponta três destinos possíveis para o desfecho do Édipo feminino, que são muito bem explorados por Gerard Pommier em “A exceção feminina”. Essas possibilidades de desenvolvimento psíquico estão associadas diretamente ao conceito do símbolo fálico e sua relação com o pênis, como explica Pommier. Se a criança for incapaz de dissociar o símbolo fálico do órgão genital masculino ao longo de seu desenvolvimento psíquico, então a ausência do pênis será sempre associada à falta, à inferioridade, expressa na fórmula de Pommier “falta de pênis = falta de falo”. A consequência disso é que a mulher pode tornar-se frígida e incapaz de obter prazer na relação sexual. A segunda possibilidade também advém da incapacidade de dissociar o falo do pênis, e Pommier a sintetiza na fórmula “falo = pênis”. É o desenvolvimento que Freud aponta como da maioria das mulheres homossexuais, em que, segundo ele, a mulher pode permanecer por muito tempo com a fantasia de ser um homem e tomar uma via masculinizada de desenvolvimento da sua sexualidade. Essa via, contudo, não necessariamente implica na homossexualidade, pois trata-se aí apenas da escolha de objeto, e essa masculinização da sexualidade pode passar por outras vias. Na terceira via, que é aquela que Freud considera como o desenvolvimento próprio da feminilidade, ocorre a dissociação do símbolo fálico em relação ao pênis. Em Freud, nessa via o bebê aparecia muito associado a um substituto para o pênis como um símbolo fálico para a mulher.

O que parece ser fundamental para a psicanálise pós-freudiana é o questionamento de certos pressupostos que à época de Freud e à luz de sua prática clínica poderiam parecer como fatos dados, mas que com o tempo mostraram-se bastante questionáveis. Tal reflexão é fundamental para que possamos tomar o desenvolvimento da teoria psicanalítica como uma reflexão crítica e capaz de se atualizar, e não como uma coleção de dogmas e cláusulas pétreas, como um manual de normas sobre sexualidade escrito há um século e que devem reger as relações. Isso é o mínimo que se faz, inclusive para fazer jus ao trabalho de Freud, que ao longo de sua vida nunca cessou de questionar e reformular suas próprias concepções, negando formulações anteriores quando necessário.

Dentre estes, parece importante destacar pelo menos dois tipos de afirmações. A primeira está no peso desmedido que Freud dá aos componentes biológicos, anatômicos, na definição dos papéis feminino e masculino. Entre um texto e outro de Freud é possível notar oscilações entre a forma como Freud apresenta essa questão. Contudo, não é possível menosprezar a ênfase que ele dá ao papel masculino como preponderante, e a características da feminilidade ou masculinidade como atreladas muito fortemente aos componentes biológicos. Ao assinalar que tais características possuem um fator biológico, ou seja, intransponível culturalmente, Freud acaba por cumprir um papel infeliz de – por uma via indireta, mas nem por isso menos importante – legitimar o papel socialmente subordinado que as mulheres de sua época – como muitas ainda hoje – ocupavam. Algumas frases expressam essa concepção de forma quase gratuita, como em sua XXXIII Conferência Introdutória à Psicanálise, denominada “Feminilidade”, em que afirma que “Parece que as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções na história da civilização (...)” (FREUD, 1933, p. 162). Em outro momento desse mesmo texto Freud parece até mesmo contradizer sua hipótese de que os caminhos da masculidade e feminilidade não estão necessariamente determinados pelo sexo do indivíduo, mas sim pelo seu desenvolvimento psíquico, quando coloca o seguinte questionamento “(...) como é que a menina passa da vinculação com sua mãe para a vinculação com seu pai? ou, em outros termos, como passa ela da fase masculina para a feminina, à qual biologicamente está destinada?” (FREUD, 1933, p. 147. Grifo meu). Há muitos outros exemplos que poderiam ser citados, mas fiquemos com apenas estes.

Em momentos de bastante lucidez, o próprio Freud faz alusões a possíveis superestimações do biológico em detrimento do cultural e da necessidade de valorizar esse na constituição do feminino/masculino. Por exemplo, ao falar sobre a possível precariedade de suas afirmações sobre o caráter feminino, Freud diz:

Prometi referir-lhes mais algumas peculiaridades psíquicas da feminilidade madura, conforme as encontramos no trabalho analítico. Não pretendemos senão adjudicar a tais asserções uma validade média; e nem sempre é fácil distinguir o que se deveria atribuir à influência da função sexual e o que atribuir à educação social. (FREUD, 1933, p. 162).
 E, no início da mesma conferência, diz que:

Poder-se-ia considerar característica psicológica da feminilidade dar preferência a fins passivos. (...) Talvez seja o caso de que numa mulher, com base na sua participação na função sexual, a preferência pelo comportamento passivo e por fins passivos se estenda à sua vida, em grau maior ou menor, proporcionalmente aos limites, restritos ou amplos, dentro dos quais sua vida sexual serve, assim, de modelo. Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres a uma situação passiva. (FREUD, 1933, p. 143)

Neste sentido, nos parece bastante correto apontamentos que surgem no texto de Pommier que parecem corrigir essa imprecisão freudiana. O autor aponta que

A castração, longe de se reduzir ao temor de uma mutilação anatômica, é efetiva no momento em que o sujeito constata que o desejo materno se orienta alhures, em direção a alguma coisa, ou, com mais frequência, a alguém, a um Nome do Pai, que permite situar o mistério do falo. (...) Não é absolutamente a diferença anatômica entre os sexos que dá ao falo sua prevalência, porque, por um lado, haveria ali alguma coisa enquanto que, por outro lado, nada haveria ali. “Falo” designa inicialmente a falta, o ponto de impossibilidade onde o significante não pode definir-se a si mesmo e convoca um outro. Eis porque esse símbolo da pura diferença comanda o desejo e, por esse motivo, o órgão da cópula lhe forneceu seu nome. (...) A crítica essencial dirigida às concepções freudianas se refere, finalmente, à prevalência que a doutrina atribui ao falo para ambos os sexos, sem deixar nenhuma parte para aquilo que seria próprio do feminino. (...) Esse recurso à imagem do corpo não permite compreender porque tanto o homem quanto a mulher estão expostos a uma insuficiência, a do pênis ou a do clitóris, os quais se mostram sempre desiguais ao símbolo fálico. (POMMIER, 1985, p. 18).

                Assim, nos parece que essa leitura do fálico segue o movimento iniciado pelo próprio Freud de dissociar o símbolo fálico do pênis e corrige uma certa hipervalorização da diferença anatômica que existe tanto nos textos de Freud, como, pelo que aponta Pomier, na primeira geração de psicanalistas, como Abraham (POMIER, idem, ibid.).

                Outra questão fundamental a refletir são as próprias características que Freud aponta para o desenvolvimento do Édipo e as características que apontam como feminilidade. Dado que sua leitura e sua teorização derivam de sua prática clínica e da observação social ou de relatos de outros psicanalistas da época, é imprescindível que levemos em conta para a atualização da teoria as inevitáveis limitações históricas e culturais que as generalizações metapsicológicas feitas por Freud sofreram. Seu modelo familiar é essencialmente aquele da família mononuclear pequeno-burguesa, uma família “semi-patriarcal”, como define Nora B. S. Miguelez (MIGUELEZ, 2007, p. 26).

                Duas consequências imediatas se depreendem desse fato: a mais evidente é que não podemos tomar o modelo “pai-mãe-filho/a” que aparece na elaboração do Complexo de Édipo em Freud como um modelo fechado, mas sim como uma estrutura de papéis sociais pautados na família, que podem (ou não) ser cumpridos por outras pessoas que não necessariamente estejam situadas nessa relação de parentesco. Essa conclusão, aparentemente evidente, tem sido surpreendentemente negligenciada por um enorme contingente de psicanalistas, levando a que estes tomem partido de posições políticas francamente reacionárias e – pior ainda – supostamente em nome da psicanálise. Exemplo gritante foi o posicionamento de muitos psicanalistas franceses contra o matrimônio igualitário para pessoas de mesmo sexo em nome da defesa de um desenvolvimento “normal” do Complexo de Édipo, que estaria ameaçado pela desestruturação da família tradicional.

Esse tipo de posicionamento obviamente se distancia completamente da postura de toda a tradição crítica da psicanálise e do próprio Freud, que não atestava nenhum papel normativo à psicanálise, muito menos moralizante (vide seu posicionamento dentro da AIP para que os homossexuais pudessem exercer a clínica, que infelizmente foi derrotado e assim permaneceu por décadas após sua morte). Trata-se de uma leitura dogmática e reducionista da teoria freudiana, para dizer o mínimo.

Outra consequência negativa, que, esta sim, vemos como tendo uma origem mais relacionada ao próprio Freud, está em uma certa absolutização do conceito de feminino e masculino a partir de sua experiência e sua leitura. Curiosamente, sua conferência XXXIII começa justamente com o questionamento das características consideradas femininas “por excelência”. Isso tanto no campo anatômico:

De vez que, excetuando casos muitíssimo raros, apenas uma espécie de produto sexual – óvulos ou sêmen – está presente numa pessoa, os senhores, contudo, não poderão ter dúvidas quanto à importância decisiva desses elementos e devem concluir que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge ao alcance da anatomia.” (FREUD, 1933, p. 141)

 como também no campo do psiquismo:

Com isso, os senhores justamente reduziram as características de masculinidade ao fator agressividade, no que se refere à psicologia. Bem podem duvidar se auferiram daí alguma vantagem real, quando refletem que, em algumas classes de animais, as fêmeas são mais fortes e mais agressivas e o macho é ativo unicamente no ato da união sexual. (FREUD, 1933, p. 142)

                Contudo, parece que o próprio Freud cai em esquemas reducionistas ao fazer afirmações – sem fundamentações embasadas senão no puro empirismo – tais como: “As diferenças sobressaem também na disposição instintual que permite entrever a natureza subsequente das mulheres. Uma menininha é, em geral, menos agressiva, desafiadora e auto-suficiente; ela parece ter mais necessidade de obter carinho e, por esse motivo, de ser mais dependente e dócil” (FREUD, 1933, p. 145). Fundamentar essas características na disposição pulsional (aqui traduzida por instintual) nos parece nesse caso uma explicação tautológica que se baseia, de fato, em experiências empíricas. O próprio Freud afirma logo a seguir que “Essas diferenças sexuais não possuem consequência maior: podem ser sobrepujadas por variações individuais. Para nossos fins imediatos, podem ser negligenciadas” (FREUD, 1933, p. 145). Não nos parece, contudo, que o autor seja consequente com essa afirmação, pois repetidas vezes afirmará que as mulheres possuem características desse tipo e ainda outras – recorrentemente características depreciativas, tais como a inveja, o ciúmes, uma formação prejudicada do superego etc. – como determinantes do que considera como “feminino” e, já reconhecendo as críticas a ele dirigidas pelas feministas, as dispensa com um par de linhas.

                Não nos parece que tais características apontadas por Freud sejam meramente fruto de um preconceito machista ou patriarcal. Elas se baseiam em uma rigorosa observação clínica, como é caracterísitico do autor. Contudo, passam da observação empírica à generalização baseando-se em argumentos insuficientemente fundamentados, como a predisposição pulsional ou mesmo a diferença anatômica, deixando de lado os componentes de condicionamento educacional, cultural e histórico que ele mesmo afirma ocasionalmente não poderem ser desprezados. Isso, a nosso ver, é um ponto a ser minuciosamente pesquisado pela psicanálise, para desfazer o emaranhado de determinações entrecruzadas. A própria evolução histórica ocorrida desde Freud, ainda que relativamente curta quando considerada em sua dimensão histórica, já parece ter jogado por terra uma série de características “pétreas” da feminilidade elencadas pelo pai da psicanálise. Assim, as críticas das feministas a Freud muitas vezes também nos parecem superficiais, pois jogam fora o fruto da minuciosa análise empreendida por ele.

                Desta forma, nos parece que a apropriação mais adequada da rica elaboração de Freud em suas teorias sobre a sexualidade se dá pelo caminho apontado por Nora Miguelez quando afirma sobre o Complexo de Édipo:
O importante é que a relativização do conceito em questão permite considerá-lo, já não como universal e transcendente, mas como expressivo da ação de determinantes que o condicionam, que podem variar e modificá-lo, ou até, talvez, considerá-lo prescrito em situações que podem ser especificadas. O modelo do Complexo de Édipo, tão claro e abrangente quando se pensa nos modelos de subjetivação ocidentais do passado recente, talvez exija reajustes e até profundas modificações, no momento em que se tenta dar conta de sujeitos de outras épocas e culturas. Pode acontecer que, na determinação desses sujeitos, a lei da proibição do incesto se reflita por outras modalidades de atuação, diferentes da “família semipatriarcal” que corresponde ao contexto da descoberta freudiana, ou, mesmo, que essa lei se eclipse em sua função. (MIGUELEZ, 2007, p.26).  
               
Bibliografia:

- FREUD, S (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras completas, Edição Standard Brasileira Vol. VII. São Paulo: Imago.
- ________ (1933). Conferência XXXIII. Feminilidade. In: Obras completas, Edição Standard Brasileira. São Paulo: Imago.
- ________ (1925). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras completas, vol. XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
- POMMIER, G. A Exceção Feminina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
- MIGUELEZ, Nora B. S. Complexo de Édipo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.