segunda-feira, 25 de maio de 2015

A subversão da psicanálise



Outro dia estava em um debate na Semana de Psicologia da USP; o tema era “machismo, feminismo e psicanálise”. A psicologia da USP, até onde a conheço, é um terreno não muito amigável para a psicanálise; como todo o mainstream da psicologia hoje, ela é hegemonizada pela visão cognitivo-comportamental, fundada numa concepção antes de tudo biológica do comportamento humano. Floresce com os modelos de Pavlov, Skinner, que partem do comportamento animal, do condicionamento e estímulo-resposta para, a partir daí, proporem um entendimento do humano e seu psiquismo.

Bem, foi nesse ambiente que, após a apresentação dos palestrantes, um jovem estudante de psicologia fez uma pergunta que achei muito interessante. Era algo como: o que há de subversivo na psicanálise? Como ela propõe alguma mudança na visão estabelecida por essa sociedade patriarcal, machista? Era algo assim. Esse rapaz queria saber o que na psicanálise propõe a ruptura com o estabelecido. Se ela aceita o mundo como ele é, ou se ela o desafia. Pergunta difícil.

Pensei sobre isso, sobre o debate, sobre o lugar dessa teoria na sociedade e na minha vida. Foi bastante interessante o fato de que, antes da pergunta ser feita, na exposição feita por duas estudantes do Coletivo Feminista da Psico, elas tivessem levantado, ainda que procurando não “atacar frontalmente”, a objeção à psicanálise de que ela tivesse uma compreensão “machista” do psiquismo. Para isso, elas se fundamentaram em um trecho de Freud de “O caso Dora” em que ele afirma: “Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos”. Me chamou a atenção pois esse trecho também me revirou o estômago quando o li, e depois me fez pensar bastante.

As meninas estavam certas, mas também erradas... Sem entrar no mérito dessa colocação específica de Freud, que precisa ser discutida em seu contexto para se possa compreender o que ela de fato significa (e as interpretações, obviamente, nem sempre serão convergentes), a primeira coisa que tenho a dizer, partindo da objeção correta de que Freud carregava em si um forte ranço do patriarcado, é que nenhuma teoria, por si, garante a “subversão”. Teorias muito mais subversivas que a psicanálise, como é o caso do marxismo, já foram, elas mesmas, “subvertidas” para que servissem à domesticação e à manutenção do status quo. Quantos “marxólogos” estão hoje tranquilamente em seus gabinetes, escrevendo teses e artigos perfeitamente inocentes e bem comportados, que em nada subvertem esse mundo apodrecido. Por isso, o que vou tratar nesse texto não é se a psicanálise é ou não subversiva, pois isso depende de sua aplicação concreta, da práxis. O que vou falar é de seu potencial subversivo, tal como o entendo.

A primeira revolução que Freud fez ao abordar o psiquismo humano – e ele partiu das histéricas internadas nos hospitais para isso – foi o ato incrivelmente simples e verdadeiramente subversivo de ouvir. Ele foi aprendendo, aos poucos, a escutar o sofrimento de suas pacientes. A medicina era (era?) arrogante o suficiente para, ao se deparar com uma doença sobre a qual não tinha a menor compreensão, achar que quem estava errado era o doente, e não o conhecimento médico. A histeria era uma “não-doença”, uma frescura, uma falta de satisfação sexual, uma “coisa de mulher” no sentido mais pejorativo e misógino que se possa imaginar. A histeria – uma doenças que atingia sobretudo as mulheres – estava fadada a ser trancafiada em hospitais e manicômios, e não estudada seriamente para que se chegasse à sua cura. Isso porque era uma doença à qual podemos encontrar referências desde o Egito e a Grécia antiga...

Freud bebeu em muitas fontes, entre as quais podemos destacar Jean-Martin Charcot – o famoso estudioso da hipnose com quem Freud estudou em Paris e que lhe ajudou a compreender que havia algo na histeria que remetia ao inconsciente psíquico – e Joseph Breuer, com quem realizou seus primeiros estudos sobre a histeria e as primeiras tentativas de cura com o método da sugestão hipnótica. Aí, já havia algo novo: a tentativa de cura, a escuta, a descoberta do “trauma” por trás da doença. Mas ainda não era o verdadeiramente subversivo.

Depois, com o aprofundamento dos estudos e da prática, Freud superou sua teoria da sedução, segundo a qual a histeria seria desencadeada por um episódio de abuso sexual na infância. Freud percebeu que havia mais do que uma posição passiva na criança: que ela era um ser desejante, dotado de sexualidade, entendida aí como a faculdade de querer, desejar, se identificar com o outro; de mover sua energia psíquica em direção aos objetos de desejo. A criança fantasiava, e era dotada de sexualidade. Aí se inaugura o que é, a meu ver, subversivo. Sintomático disso foi o escândalo causado pela ideia de que crianças fossem dotadas de sexualidade (a ideia de que crianças são gente, sujeitos).

A psicanálise entende que há algo inconsciente que nos determina; essas determinações inconscientes são um produto de nossa história, de nossa experiência, de nossos desejos em contato e em conflito com o outro; essas experiências se moldam em nossa subjetividade, se internalizam, dão origem às respostas que aprendemos a ter diante do mundo, diante dos desejos; o conflito externo é também interno, é motivador e fonte dos conflitos psíquicos que, uma vez reprimidos, são inconscientes, mas permanecem atuantes sobre nós. E aí, uma outra subversão da psicanálise em sua época: a ideia de que não somos seres de pura razão e plenamente conscientes de nossas motivações e desejos. Um golpe no egocentrismo de uma Belle Époque. 

Esses conflitos, por sua intensidade e irresolução, podem nos levar a adoecimentos. Questões reprimidas “explodem” em sintomas, uma manifestação distorcida daquilo que pesa em nosso inconsciente, em nosso desejo. O corpo acaba expressando aquilo com que nosso consciente não consegue lidar. O processo da psicanálise é a investigação de nós mesmos pela fala, a procura desses desejos e motivações inconscientes, uma pesquisa em nós mesmos sobre aquilo que somos, como nos tornamos e que, por fim, pode nos ajudar a pensar como e o que queremos ser. É um processo de tomada de consciência das forças psíquicas que agem dentro de nós, e, assim, uma forma de nos tornarmos mais sujeitos de nós mesmos.

É isso o que é subversivo na psicanálise. Para deixar isso mais claro, vamos pensar um pouco sobre como esse mundo nos situa diante dele e entende nossa saúde, nosso adoecimento e nosso psiquismo. Somos o tempo inteiro sujeitados àquilo que não nos pertence: o tempo do trabalho, as imposições de uma rotina, de um sistema, de uma vida, na qual não somos nós que escolhemos. A depressão, o “mal do século”, está ligada a uma vida em que somos atacados pela cultura do individualismo em um mundo que paradoxalmente nos impossibilita de sermos sujeitos. Nos tornamos sujeitos pelo consumo, padronizado, que também é negado à maioria. A alienação é a marca maior, a solidão é a expressão corriqueira, a vida se torna estranha a nós. A possibilidade de sermos sujeitos nos é permanentemente negada.

A medicina nos oferece uma resposta: ela desenvolve medicamentos avançados, poderosos, capazes de apaziguar as nossas dores. Calmantes para o pânico, a fobia, a angustia e a insônia. A psicanálise, seu longo e ineficaz “blá blá blá”, que leva meses (ou anos) para descobrir tortuosamente as origens de um sintoma, é uma coisa do passado. A psicanálise, diz a “ciência”, é uma coisa para o tempo em que não sabíamos as determinações bioquímicas, os neurotransmissores que causam as tristezas e os adoecimentos. Agora, é só repor o seu nível de serotonina, e a felicidade e a tranquilidade serão suas. A ciência resolveu seus problemas, sem essa “enrolação” de inconsciente, desejo, traumas, conflitos psíquicos.

A operação ideológica por trás disso tem suas sutilezas, apesar de seus resultados violentos. Veja bem: seu sofrimento psíquico não é mais parte de sua constituição como sujeito, de sua história, de seus desejos e os conflitos que existem no seu psiquismo. As causas são orgânicas e iguais para todos; as causas são bioquímicas, e não históricas, subjetivas e sociais. Assim, para todos, um critério único: uma lista de sintomas, um cardápio de drogas eficientes a serem administradas. A tão esperada cura está ao alcance de um balcão de farmácia.

Me responderão que esse discurso que faço é “ideológico”, “romântico”, que ele não analisa objetivamente as doenças, as pesquisas que demonstram os resultados, os níveis de serotonina etc. A resposta é que, sim, meu discurso é ideológico, tanto quanto é esse discurso pretensamente “neutro” e “científico”. Todo conhecimento é ideológico, e isso parte, em primeiro lugar, da pergunta que fazemos diante do objeto que indagamos. A pergunta da psiquiatria é: quais as causas bioquímicas do sofrimento humano? As pesquisas responderão: a baixa taxa de serotonina.

Agora, me diga uma coisa: quem disse que as baixas taxas de serotonina são a CAUSA e não a CONSEQUÊNCIA da tristeza? A inversão da pergunta é um tanto ridícula, pois coloca a questão como “o que vem primeiro, o ovo ou a galinha?”. Além do que, qualquer visão minimamente dialética saberá que a divisão da lógica formal entre “causas” e “consequências” puras é um erro metodológico em si; como diz Marx “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações”, determinações que se influenciam reciprocamente. Mas colocar a questão dessa forme serve ao propósito didático de mostrar o quão ingênua ou de má fé é a metodologia “científica e neutra” dos que reduziram o sofrimento humano e sua subjetividade a uma secreção hormonal ou um neurotransmissor.

Foi esse mesmo “método científico neutro” que criou teorias como as da eugenia, fundadas em “ciências” como a frenologia, em que, baseado no formato do crânio de uma pessoa, poderíamos dizer se ela era burra, inteligente, propensa ao crime ou de boa índole etc. Adivinhem só o que o formato do crânio dos negros sugeriu a esses cientistas “neutros”? Isso porque a investigação da realidade pressupõe o isolamento de alguns fatores e a investigação deles como variáveis. Ora, pensemos assim: o “frenólogo” vai ao presídio e mede o crânio dos criminosos. A partir disso ele tem os dados: 95% dos criminosos têm o crânio com o formato típico dos negros; essa conclusão “neutra” lhe diz “cientificamente” quem está propenso a ser criminoso. Esse método apenas esquece de considerar todo tipo de variável histórica e social que fez com que os negros fossem 95% dos presos; ela desconsidera como variável alguns séculos de escravidão e opressão, de racismo e violência, que encarcera os negros, e não os brancos. A resposta para tudo está na variável “formato do crânio”, que foi utilizado para determinar as consequências do comportamento do indivíduo.

Esse exemplo é para pensarmos as metodologias “modernas” que utiliza a psiquiatria, quando, por exemplo, vê na TPM e em hormônios femininos a causa de tantos “distúrbios do humor”. Desde Freud, a maioria das pacientes psiquiátricas eram mulheres; hoje, a depressão, o pânico e a fobia continuam atingindo sobretudo as mulheres. A psiquiatria está preparada para levar em consideração a situação social das mulheres, a opressão milenar do patriarcado, para entender a origem das doenças psíquicas que acometem as mulheres? Ou para ela basta medir as taxas de serotonina, tal qual os frenólogos mediam crânios? Assim, não apenas a psicofarmacologia vê em variáveis como “taxas de serotonina” as “causas” para as doenças, como diversos outros campos da pesquisa científica incorrem em erros de estupidez notável. Por isso, é comum vermos dia sim, dia não, uma “descoberta” no jornal sobre o “gene da genialidade”, o “gene da homossexualidade”, o “gene da longevidade” ou qualquer baboseira do estilo. Uma tecnologia de ponta, sem um método dialético de apreensão da realidade, só produz resultados tão míopes quanto esses.

A questão é que as linhas hegemônicas de psicologia, a cognitivo comportamental, o behaviorismo, a psicofarmacologia, veem a doença como algo externo ao sujeito que o acomete. O médico ou o terapeuta, dotados de respostas, tratam o doente para livrá-lo de seu mal. A pessoa adoecida não é mais sujeito de nada. Sua fobia, seu pânico, sua ansiedade, sejam qual forem suas origens, serão tratadas da mesma forma, sob os desígnios das pesquisas e dos remédios adequados. O sofrimento humano é cada vez mais despersonalizado nessa visão bioquímica. 

Um exemplo menor, mas expressivo dessa concepção, está na definição de luto. Os psiquiatras usam como sua “bíblia” o DSM, o livro que cataloga todos os transtornos mentais. Em sua quarta edição, o DSM definia o luto como um “transtorno de adaptação”, o que por si só já é algo bastante sintomático. É o luto um “transtorno”? De adaptação a que? Ao ritmo embrutecedor e desumano do trabalho. Ou seja, se morre alguém próximo, pode ser que a pessoa sofra, mas entendamos que ela está “mal adaptada” à sociedade e fiquemos alertas para a possibilidade de medicá-la. O DSM cinco, recém-lançado, reviu sua definição de luto, estabelecendo um prazo: quinze dias é o “tempo padrão”. O que isso quer dizer? A perda de pessoas ou coisas amadas passou a causar menos sofrimento psíquico nos últimos vinte anos? Que todos nós sentimos e sofremos a perda da mesma forma, com a mesma duração e intensidade, independentemente de nossas características individuais e subjetivas? O que define esses tempos, se não a necessidade do capital de que as pessoas produzam, que os gastos com afastamentos de trabalhadores sejam cortados. Deu quinze dias e o cara não trabalha? Só porque morreu o irmão? Mete antidepressivo, sobe essa taxa de serotonina, e de volta ao trabalho alienado. A trata-se, mais uma vez, o sintoma da tristeza persistente: mesmo em algo evidentemente motivado por uma vivência, não há espaço para a consideração do sujeito que sofre. As respostas estão prontas, baseadas em prazos, sintomas e medicamentos pré-estabelecidos.

A psicanálise vem perdendo seu espaço e sua hegemonia incessantemente desde os anos 1950, quando a psicofarmacologia descobriu as primeiras drogas eficazes contra a depressão. Hoje, ela é vista predominantemente como atrasada, incapaz de se atualizar em relação aos avanços técnicos. Sim, ela é uma forma de compreensão psíquica estranha a esse tempo. Estranha porque seu método é o do auto-conhecimento, o de investigar as causas do sofrimento psíquico a partir de entender aquele que sofre como um sujeito diante de sua dor. Não há prazos certos e nem sequer a promessa de uma “cura”, termo, aliás, de emprego bastante duvidoso, já que podemos questionar mesmo os limites entre uma pessoa “doente” e “normal”, e considerando que o método psicanalítico é igualmente aplicável a ambos os casos. Em um mundo que não nos quer sujeitos, nunca, mas sim consumidores e bons empregados, a ideia de que alguém se transforme em sujeito é, sim, talvez mais do que nunca, subversiva. É certo que a “efetividade” da psicanálise dificilmente será a mesma de um remédio que mexe com a sua bioquímica cerebral e te bota de pé pronto pra bater o cartão de ponto. E é certo que essa sociedade está se lixando para se você resolveu seus conflitos, mas está é preocupada se você é “produtivo” e “bem adaptado”. Nem sempre a psicanálise irá te tornar uma pessoa mais “bem adaptada”. E quem disse que é sinal de saúde ser bem adaptado a uma sociedade doentia? 

Mas essa subversão é apenas potencial, na medida em que a psicanálise e sua forma de enxergar o psiquismo jamais deixaram de ser restritas a uma pequena elite. As tentativas de torna-la acessível foram massacradas por um mundo que não permite o acesso de grande parte da população sequer ao saneamento básico ou a um atendimento de emergência em um Pronto Socorro. Hoje os que têm acesso a ela são os que, em geral, podem pagar pequenas fortunas por consulta e, ainda por cima, dispor desse bem valioso e escasso que no capitalismo pertence aos patrões: tempo. Tempo de parar, falar, ouvir, refletir. E, é claro, ainda por cima, nada garante que esse potencial subversivo do método psicanalítico será colocado em prática; a sua restrição a círculos de elite é castradora para a psicanálise, que perde em profundidade, em perspectiva, se tornando limitada em seus objetivos e sua compreensão do mundo. Enquanto seus praticantes forem os membros de uma classe social que está inserida em uma “bolha” com condições materiais bem diferentes da maior parte da população, as suas questões estarão limitadas e restritas a esse universo. Para que ela possa ser subversiva, seus adeptos terão que tomar como sua uma prática que está muito além da terapêutica, mas que é a política, a social, a de luta contra uma sociedade que efetivamente enclausura o psiquismo humano em jaulas que nem o melhor analista poderá ajudar seus pacientes a romperem.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Sabina Spielrein: pioneira da psicanálise no país dos sovietes




(texto publicado originalmente no Esquerda Diário)

No ano de 1904 pela primeira vez se realizou um tratamento psicanalítico fora da cidade de Viena e sem a supervisão direta de Sigmund Freud, o fundador da ainda jovem psicanálise. O médico a aplicar o tratamento era Carl Gustav Jung, discípulo de Eugene Bleuler, diretor da Clínica do Hospital Burghölzli, ligada à Universidade de Zurique, na Suíça. Sua paciente era a jovem russa Sabina Spielrein. Foi esse tratamento que levou a que se estabelecesse a relação entre Freud e seu mais célebre discípulo e posterior dissidente, fundador da psicologia analítica, Jung. Muito mais se fala desse tratamento, contudo, retratado, por exemplo, no filme de David Cronenberg, “Um método perigoso”, do que do impressionante e brilhante destino de sua paciente, Sabina Spielrein. Não deixa de ser tristemente representativo de nossa sociedade que essa mulher seja lembrada muito mais pelo fato de ter sido amante de Jung do que pelas contribuições fundamentais que deu à psicanálise e outras áreas do conhecimento.

                O “esquecimento” de Sabine Spielrein por cerca de sessenta anos da história da psicanálise, e na qual ainda não foi reinserida com a justiça devida, não é um mero acaso, mas é uma expressão bastante nítida de como uma sociedade patriarcal e machista se manifesta em cada tentativa das mulheres de furar esse cerco. Assim, foi apenas em 1977, quando o analista junguiano Aldo Carotenuto publicou as cartas trocadas entre Sabina, Freud e Jung que ela voltou a ser discutida, ainda que o peso da “anedota” de seu caso amoroso com Jung tenha, mais uma vez, revelado o peso do patriarcado, deixando a obra de Spielrein em segundo plano.

A “segunda analista”

                Sabina não foi a primeira mulher a penetrar o então restrito círculo dos pioneiros da psicanálise que se reuniu em torno de Freud. Dois anos após a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena, ocorrida em 1908 com vinte e dois membros – todos homens – foi proposto, por iniciativa de Paul Federn, a admissão da primeira mulher: Margarete Hilferding. Além de uma das primeiras mulheres a se formar na Faculdade de Medicina de Viena, era militante socialista no Partido Social-Democrata da Áustria (SPD), junto a seu companheiro, o célebre economista Rudolf Hilferding, cujo livro “O Capital Financeiro” foi uma das principais fontes econômicas para “O Imperialismo”, de Lênin. É provável que não apenas a condição de mulher, mas também a de militante socialista, tenha pesado para levantar a objeção de Isidor Sadger, membro da sociedade. Freud, então, declarou que seria uma “grosseira inconsistência” se as mulheres não pudessem, por princípio, fazer parte da sociedade. Então, precedendo a votação sobre a adesão específica de Margarete Hilferding, há uma votação sobre se seriam aceitas mulheres na sociedade: a adesão destas é aceita por onze votos a favor e três contra. 

                Finalmente, na reunião de 27 de abril de 1910 é votada a adesão de Hilferding, após uma discussão em que as posições expressam uma impressionante misoginia, inclusive por parte dos que defendem a aceitação de Hilferding. Inclusive o próprio Freud, defendendo a aceitação da candidata, chega a afirmar que “a mulher nada ganha em estudar, pois, no conjunto, não melhorará por esse caminho, pois as mulheres não podem igualar-se aos homens na obtenção da sublimação da sexualidade”. No entanto, também afirma que na misoginia dos homens há uma atitude infantil. De acordo com Elisabeth Roudinesco, a opinião de Freud sobre a menor capacidade de sublimação das mulheres será alterada no futuro. A ata da reunião é descrita pormenorizadamente por Renata Cromberg em seu excelente artigo “Primeiras psicanalistas”.

É interessante notar que, apesar de um posicionamento político francamente conservador, e de posições por vezes problemáticas sobre o papel das mulheres, Freud tenha defendido enfaticamente a admissão das mulheres na psicanálise, bem como em outras ocasiões defendido que essas deveriam ter um papel protagonista para o estudo do psiquismo das mulheres em questões que ainda considerava não estudadas profundamente. Dessa vez, a opinião de Freud prevaleceu contra o obscurantismo de alguns de seus colegas, mas nem sempre foi assim: quanto à admissão de homossexuais, ele teve seu voto vencido, tendo a IPA (International Psychoanalytical Association) rejeitado sua admissão como psicanalistas, com uma regra que nunca foi escrita mas que barrou o acesso de homossexuais à formação psicanalítica por décadas a partir de 1921. Ainda hoje, a homofobia persiste com força, ainda que não ouse se proclamar tão abertamente, na maior parte das associações psicanalíticas. Outra votação em que Freud quase foi derrotado foi em relação a não admitir a entrada da Sociedade de Psicanálise de Moscou em decorrência do governo operário russo (da qual Sabina Spierlman foi uma das fundadoras). Essas e outras propostas reacionárias que contaram com a objeção de Freud eram consequência da influência de Ernst Jones, um dos grandes responsáveis pela domesticação da psicanálise para que ela pudesse ter uma convivência “pacífica” com o regime nazista mesmo após o exílio de Freud em Londres. Em nome da “neutralidade”, a psicanálise oficialista foi cúmplice de inúmeras outras violações, como o regime militar no Brasil.

O pioneirismo teórico

                Sabina Spielrein inicia seu tratamento com Jung em 1904 com apenas dezoito anos e, após a conclusão, forma-se em medicina. Em 1911 ingressa na Sociedade Psicanalítica de Viena, cerca de um ano após a admissão de Hielferding. Suas publicações dessa época colocam Sabina na vanguarda de questões de primeira importância para o desenvolvimento da teoria psicanalítica. 

Na medicina, sua dissertação de conclusão de curso, intitulada “O conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (dementia praecox)” foi um dos primeiros trabalhos a relatar minuciosamente a aplicação da técnica psicanalítica em um caso de esquizofrenia – termo que havia sido apenas recentemente cunhado por Bleuler para designar o que até então era conhecido como “demência precoce”. A dissertação abordava o conteúdo do tratamento de uma paciente e a relação entre sua fala e o conteúdo sexual reprimido, e, ao lado de trabalhos de Jung, Bleuler e Karl Abraham foi fundamental para efetivar a psicanálise como uma terapia efetiva em relação aos pacientes psicóticos.

Em 1912, Spielrein se adianta em nove anos em relação a Freud ao elaborar o conceito de pulsão de morte ou de destruição, em seu artigo “A destruição como causa do devir”. É a partir da análise da esquizofrenia e da neurose, da realização artística e da entrega amorosa, que ela afirma que o conflito entre as pulsões sexuais de vida e as pulsões de destruição e de morte fundem-se na criação do devir, do movimento criador.

Ainda nesse mesmo ano, publica “Contribuições para o conhecimento da psique infantil”, sendo também uma importante desbravadora do terreno da psicanálise com crianças, bem anteriormente do que a historiografia oficial celebra com Anna Freud e Melanie Klein, cuja primeira comunicação diante da sociedade psicanalítica, sete anos depois, seria precedida ainda por dez artigos de Spielrein sobre a análise de crianças. Esse tema seria central em sua produção, dando origem a outros artigos como “A origem das palavras infantis mamãe e papai – sobre o problema da origem e desenvolvimento da linguagem”, de 1920, ou “Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do afásico e o pensamento subconsciente”, de 1923. Nesse campo, sua atuação prática também seria grandiosa, como veremos a seguir em relação à sua atuação na Rússia.

Spielrein também teve uma importante parceria com Jean Piaget, que fez análise com ela durante oito meses, seis dias por semana. Juntos, trabalharam com Eduard Claparède no Instituto de Psicologia Experimental e de Investigação do Desenvolvimento Infantil Jean Jacques Rousseau. Desenvolveram em conjunto um trabalho sobre as origens do pensamento e da linguagem e uma teoria da simbolização que, contudo, nunca foi escrita antes que seus caminhos se separassem.

Levando a psicanálise ao país dos sovietes

                Após a colaboração com Piaget e Claparéde, Spielrein chegou a residir em Berlim a pedido de Freud, que julgava sua contribuição ali importante. Contudo, em 1923, Sabina partiria para a Rússia revolucionária. Ali, por intermédio de Trotski, que sempre defendera o incentivo e a plena liberdade para o desenvolvimento das investigações psicanalíticas, Spielrein seria muito bem recebida pelo governo operário. Foi convidada por Vera Schmidt a dirigir a clínica psicanalítica para crianças que aquela havia fundado, bem como a inédita experiência do jardim da infância psicanalítico (mais conhecido pelo nome oficial de Lar Experimental para Crianças ou Casa Branca), ambos construídos sob o incentivo do governo soviético, que, mesmo em meio à imensa miséria gerada pela sucessão de duas guerras e do poderoso ataque imperialista à revolução de outubro, encontrou recursos para fomentar essas fascinantes iniciativas. Spielrein também assumiu a chefia do departamento de pedologia (uma ciência soviética que estudava o desenvolvimento da infância, mais um exemplo de como as crianças tinham o primeiro plano nas prioridades do Estado operário) na Universidade de Moscou. 

Fundou então, junto a Dimitrievitch Ermakov e Moshe Wulff, a Sociedade Psicanalítica na Rússia, que chegou a ser a mais numerosa de sua época. Sem dúvida, não se poderia ver como simples “coincidência” esse impressionante florescimento da psicanálise na Rússia, justamente no período revolucionário em que houve um maravilhoso desenvolvimento das artes e ciências no rastro da revolução, enquanto na Europa a psicanálise se encontrava cada vez mais estrangulada pelo ascenso do nazi-fascismo que, quando não procurou destruir diretamente a teoria psicanalítica, como com as fogueiras de livros na Alemanha, acabou por “domesticar” a psicanálise, o que gerou seus efeitos devastadores na IPA (Associação Internacional de Psicanálise) sob o comando de Ernst Jones e a conivência de Freud, que mesmo tendo sido obrigado ao exílio em Londres, desejava que a psicanálise mantivesse a posição de “neutralidade” para que pudesse sobreviver em meio ao acirramento bélico que começava a se gestar.

O período de glória da psicanálise na Rússia soviética duraria mais alguns anos, durante os quais Spielrein desenvolveu uma intensa atividade, atuando como analista didata, proferindo seminários e conferências, e emergindo como um verdadeiro pólo de atração de novos cientistas e analistas. Ocupou nesse período três cargos: o já mencionado na cátedra de Pedologia da Primeira Universidade de Moscou; o de consultora médica pedagógica da Terceira Internacional em uma vila de crianças (mais uma experiência social fruto da revolução, muito bem descritas no livro “Mulher, Estado e Revolução” da historiadora Wendy Goldman); e, finalmente, como colaboradora científica no instituto psicanalítico estatal (provavelmente o único instituto público a financiar a psicanálise no mundo nessa época). Sua influência nessa época foi decisiva para nomes como Vygotsky, Leontiev e Luria, três dos mais importantes pioneiros da psicologia soviética.

No entanto, o estrangulamento da revolução nas mãos do estalinismo significou também o fim das possibilidades de desenvolvimento da psicanálise na URSS. Considerada como uma “ciência burguesa” e coberta de injúrias pelo pensamento burocrático e castrador da camarilha que expropriou o poder dos sovietes e da classe operária, a psicanálise foi rapidamente sendo extirpada da União Soviética. Emblematicamente, a Sociedade Psicanalítica Russa foi dissolvida em novembro de 1929, o mesmo mês em que era exilado o dirigente revolucionário Leon Trotski, que havia sido e permaneceria sendo o mais fervoroso combatente pelo legado revolucionário russo, e também quem havia lutado para que a psicanálise tivesse todo o espaço e os recursos necessários para se desenvolver no país dos sovietes. Então, Sabina retornou à sua cidade natal, Rostov sobre o Don. Em 1936, a psicanálise é oficialmente proibida pelo estalinismo. Diante disso, Sabina retornou à música, à qual já havia se dedicado profissionalmente entre 1913 e 1918, e pela qual era apaixonada. A partir de 1929 foi proibida de deixar a Rússia; em 1937, seus irmãos são deportados aos Gulags; em 1942, durante a ocupação nazista, Sabina e suas duas filhas foram assassinadas pelas tropas de ocupação. 

Assim, com apenas 56 anos, Sabina Spielrein morreu. Sua vida foi testemunho de uma mulher que superou o peso colossal de uma sociedade patriarcal, vencendo a patologia psíquica que lhe afligiu, a discriminação, contribuindo para o entendimento da mente humana e sendo uma pioneira na investigação. É também um testemunho valioso da grandiosa contribuição que a revolução socialista pode dar para o desenvolvimento do conhecimento humano no sentido da emancipação, bem como do poder castrador da burocratização de um processo revolucionário em curso.

Referências:



quarta-feira, 6 de maio de 2015

Porque viver sem ser uma máquina (carta aberta à minha amiga deprimida)



Minha querida, eu li seu desabafo. Foi cedo que essa dor de viver chegou em você. E cedo te convenceram que você era uma máquina: sua química desbalanceada levou você a esse “defeito” de não querer viver, de não funcionar “normalmente” como as outras pessoas. Pior do que querer a morte, foi isso de que te convenceram com a autoridade da ciência, o poder dos números e estatísticas: de que você não é um ser desejante, capaz de ser sujeito; você é uma máquina programada bioquimicamente para sentir e pensar aquilo que está inscrito no seu corpo. Sua dor não tem motivos palpáveis, justos, legítimos – ela é o fruto de um “lapso no cérebro”, como você mesma disse.

Quando você deixa de ser sujeito diante de sua própria vida, a sua dor se torna algo externo, algo que chega e te arrebata, e contra a qual você nada pode fazer. Exceto, talvez, tentar balancear sua bioquímica com as receitas que os especialistas te dão. Os remédios são sujeitos de sua cura, os médicos são sujeitos de sua cura. Você, não. Você passivamente sofre, passivamente se medica, passivamente assiste a batalha pela sua vida e sua morte. Assim, o ato de se matar é “egoísta”; afinal, se sua vida não pertence a você e, quando você a tira, está tirando algo de outra pessoa. É a esse ponto que chegou seu desejo. Ele é culpa, ele é vergonha. E a morte passa a ser a única perspectiva de ser livre.

O primeiro babaca que te receitou os remédios (acredito no título de babaca que você deu a ele não apenas por confiar em seu julgamento, mas porque minha experiência confirma a babaquice em alguém que não se dá o papel de ser mais que um mercador de ilusões e panaceias da indústria farmacêutica), você disse que ele “se achou muito esperto quando disse que minha depressão teria algo a ver com o que eu tinha passado”. Pois é, para alguém que se acostumou a ver o sofrimento e o desejo como um cérebro e um punhado de neurotransmissores, é realmente uma manobra ousada de esperteza achar que uma pessoa pode ser influenciada também pela vida. Mas a esperteza dele ficou só no discurso, porque a prática era a mesma: tome esses remédios e ficará curada. E o que você passou, que “tinha a ver” com a depressão? Pouco importa, para o babaca. 

Mas é preciso pensar além do que os babacas falam, o que sei que você é muito capaz de fazer, ainda que seja mais difícil quando se trata de nós mesmos e, principalmente, no meio desse sofrimento que você está passando. Há uns cem anos atrás um cara menos babaca do que esse psiquiatra, chamado Freud, falava de uma coisa que ele chamava de séries complementares: que as doenças psíquicas não têm uma origem única, simples, de fácil determinação, como querem os manuais de psiquiatria e os babacas que os leem e reproduzem como a uma bíblia. Sim, o seu cérebro importa; não, a sua mente não é só um reflexo da sua bioquímica cerebral. Aquilo que chamamos de fatores inatos ou hereditários (ou seja, a sua genética, a constituição biológica do seu cérebro e aquilo que você herdou) têm um peso para saber como será sua formação psíquica; também têm um peso a experiência, as suas vivências, o que você passou e como você “digeriu” tudo isso; nisso tem um papel fundamental a infância e, em particular, a sexualidade infantil. E aí, por cima disso tudo, tem a causa específica, ou seja, a gota d’água, o acontecimento (seja “concreto” ou psíquico) que desencadeou o aparecimento da doença. Ele faz emergir tudo aquilo que estava ali, aquela montanha de pólvora enterrada no seu inconsciente, esperando uma faísca para explodir. Deve ter sido apenas essa faísca que o tal babaca viu, achando que sua doença “tinha a ver” com ela. Bom, pelo menos algo o babaca percebeu.

Mas eu estou dizendo tudo isso pelo seguinte, minha amiga: a sua doença, o seu sofrimento, não é “causado por nada” e nem alheio ao seu desejo, à sua história, ao que você pode fazer em relação a ele. A sua vida é sua, em primeiro lugar. Tome os remédios, mas não porque eles irão resolver o balanço bioquímico do seu cérebro sobre o qual você não tem nenhum controle e te impedir de cometer o ato egoísta do suicídio. Tome os remédios porque eles vão te ajudar agora, nesse momento de extrema dificuldade, e servir como muletas. Muletas para que, ainda mancando, você possa passar por um processo de análise, possa investigar sua própria história, a história de seus desejos, as questões que você reprimiu em seu inconsciente, e, assim, aos poucos, ir sendo capaz de lidar com tudo isso que fez você adoecer. Tornar-se mais sujeito de tudo que te atormenta e se fortalecer para, depois, não precisar mais das muletas e andar com as suas pernas, tendo controle sobre a sua vida. 

Não há aqui cura mágica, e as nossas pernas sempre serão bambas, sujeitas a tropeços e a cair pelo caminho. É para isso que estamos aqui, nós, as pessoas que te amam. Para te ajudar quando você tropeçar, para te dar um ombro no qual você possa se escorar de vez em quando, ainda que eles nunca possam substituir suas pernas (da mesma forma que as muletas dos remédios não poderão). E, se, um dia, você não aguentar mais essa vida e resolver tirá-la, não estará cometendo um crime contra ninguém se não contra a sua possibilidade de viver. A sua vida não pertence à sua mãe, à sua família, aos seus amigos: ela pertence a você. E é você e mais ninguém que, em última instância, é capaz de julgar se ainda vale viver ou não. 

Fique viva hoje, eu te recomendo, porque você tem tudo a seu favor para melhorar e viver uma vida plena. As possibilidades estão todas diante de você. Se não estivessem, e a vida fosse um fardo, jamais insistiria para que você permanecesse entre nós. Lembre-se, a nossa luta, na qual tenho orgulho de estar a seu lado, é para isso: que as pessoas possam viver sua vida plenamente. Quando essa possibilidade se esgota, a luta para que ela permaneça existindo, em forma vegetativa, não é mais nossa, mas dos padres, dos moralistas, daqueles que veem a vida como um fardo, um dever, algo que pertence a “deus” ou à “família”. Daqueles que querem você como uma pessoa “funcional”. Não é isso que você deve ser. Você deve ser um sujeito, desejante, capaz de fazer e lutar por aquilo que ama. É nessa caminhada que estarei ao seu lado, sempre.