terça-feira, 14 de julho de 2020

Crise, mal-estar e violência: instrumentalização política da pulsão de morte e da moral sexual




texto apresentado originalmente no colóquio interno do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) em março de 2019

Conflito e dualidade em Freud: pulsões e recalque; indivíduo e sociedade

Na obra de Freud, o conflito entre forças antagônicas ocupa um lugar central. Conflitos psíquicos no seio do indivíduo marcam a fundação da psicanálise, quando Freud se dá conta que o jogo de forças entre pulsões, o seu recalque e o retorno do reprimido estão na base do adoecimento neurótico. “A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela (...)”. (FREUD, 1914, p. 10), dizia em 1914.

A dualidade e o conflito se expressam em cada passo da construção teórica freudiana. Isso se verifica em outro elemento da teoria psicanalítica no qual a dualidade é a marca indelével: a teoria das pulsões. Divididas, a princípio, entre pulsões sexuais e de autoconservação, reformuladas como pulsões do eu e pulsões objetais, depois encontram nova configuração na dualidade entre as pulsões de Eros e Thanatos, ou pulsões libidinais – conjunto que passa a englobar os dois grupos anteriormente opostos – e as pulsões de morte, que visam o retorno ao estado inorgânico, e abrangem a destrutividade e agresssividade.

Essas dualidades se apresentam como conflitos psíquicos, mas se encontram em sua origem intimamente ligadas à relação do eu com o outro, ou seja, da inserção do sujeito no tecido social. Freud explicita isso ao dizer que

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode nos parecer muito significativa, perde muito de sua nitidez ao ser examinada mais a fundo. É verdade que a psicologia individual está orientada para o ser humano singular e investiga os caminhos pelos quais ele busca alcançar a satisfação de suas moções de impulso, só que ao fazê-lo, apenas raramente, sob determinadas condições excepcionais, ela desconsidera as relações desse indivíduo com outros. Na vida psíquica do indivíduo, o outro entra em consideração de maneira bem regular como modelo, objeto, ajudante e adversário, e, por isso, desde o princípio, a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social nesse sentido ampliado, porém inteiramente legítimo”. (FREUD, 1921, p. 35)



Assim, é recorrente na obra de Freud a constatação de que os conflitos psíquicos são fruto da expressão internalizada dos conflitos entre o outro/sociedade e o indivíduo. O conflito, na primeira dualidade pulsional, está ligado ao embate entre o princípio do prazer, na realização das pulsões sexuais, e o choque com a necessidade de sobrevivência, manifesta nas pulsões de autoconservação e que expressam o princípio de realidade.

A repressão das pulsões como base da vida social

Em 1908, Freud coloca grande ênfase no conflito entre a moral social e possibilidade de realização das pulsões sexuais, discutindo isso no texto “moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”. Ali, aparecem dois aspectos fundamentais da visão de Freud sobre o tema: em primeiro lugar, de que a repressão sexual é a base da civilização, pois é o recalque daquelas pulsões que entram em conflito com a realidade externa que permite o convívio de acordo com as regras coletivas e, portanto, a vida “harmoniosa” em grandes grupos. Por outro lado, Freud chama a atenção para a forma como os exageros dessa repressão originam a neurose. A concepção de que as pulsões sofrem repressão e recalcamento sob o peso da moral – que depois ganharia sua representação psíquica no conceito do Super-eu – é desenvolvida plenamente em “Totem e Tabu”, em 1913, texto que também coloca como peça central dessa repressão a castração e o Complexo de Édipo, defendidos por Freud como universais. Em 1920, em “Além do princípio do prazer”, estende a teoria para abarcar as pulsões de morte. Em 1930, com “O mal-estar na civilização”, Freud leva a fundo os temas do conflito entre indivíduo e sociedade.

Nesse texto, Freud dá novamente grande ênfase à repressão sexual, denunciando seus excessos:

A escolha de objeto do indivíduo sexualmente maduro é reduzida ao sexo oposto, a maioria das satisfações extragenitais é interditada como perversão. A exigência, expressa em tais proibições, de uma vida sexual uniforme para todos, ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, priva um número considerável deles do prazer sexual e se torna, assim, a fonte de grave injustiça. (...) o que permanece isento de proscrição, o amor genital heterossexual, é ainda prejudicado pelas limitações da legitimidade e da monogamia. A civilização atual dá a entender que só quer permitir relações sexuais baseadas na união indissolúvel entre um homem e uma mulher, que não lhe agrada a sexualidade como fonte de prazer autônoma e que está disposta a tolerá-la somente como fonte, até agora insubstituível, de multiplicação dos seres humanos. (FREUD, 1930, p. 68-69)

E agrega um julgamento categórico a essa moral: “isso, naturalmente, é algo extremo. Sabe-se que demonstrou ser inexequível mesmo por breves períodos”.

A essa questão, talvez se possa objetar que a severidade da moral sexual já não é a mesma de 88 anos atrás. Mas percebemos a permanência desses valores, por exemplo, em uma recente declaração do Papa: “O corpo humano não é um instrumento de prazer, mas sim o lugar de nosso chamado ao amor, e no amor autêntico não há lugar para luxúria” (apud GLASS, 2018). Na mesma ocasião, o mais importante líder religioso do mundo afirmou que a forma elementar do matrimônio é o casamento heterossexual, que respeita a “polaridade masculina e feminina”. Ou seja, ipsis litteris a moral denunciada por Freud como inexequível há quase um século.

Não parece casual que essa instituição, que visa regulamentar do modo mais estrito, repressor e normativo a vida sexual de seus fiéis, seja a fonte recorrente de casos de abuso sexual contra crianças, a ponto de o papa ter que assumir e pedir desculpas publicamente (PIMENTEL, 2018) por milhares e milhares de casos ao redor do mundo, envolvendo todos os níveis da hierarquia eclesiástica. É, ao mesmo tempo, uma brutal confirmação da constatação de Freud sobre a impossibilidade de levar esse programa adiante, mas também da hipocrisia dessa moral e da conivência de suas transgressões1. Cabe notar, nesse exemplo, que o retorno do recalcado na forma de agressão sexual a crianças não é apenas um exemplo de que a norma “se contorna” de forma hipócrita, mas que ela se torna o fermentador de uma sexualidade violenta e perversa, que toma um outro vulnerável como objeto sexual à revelia.

Freud também aponta a necessidade de reprimir a pulsão de morte dirigida ao outro, ou seja, a agressividade: “A existência desse pendor à agressão, que podemos sentir em nós mesmos e justificadamente pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios” (FREUD, 1930, p. 77).

O delicado balanço entre renúncia pulsional e harmonia social

É simples pressupor que, quanto maiores forem os ganhos individuais que cada um percebe na vida em sociedade, tanto mais factível será sua renúncia pulsional em nome da coesão social. O princípio de realidade dita ao indivíduo, que tem a segurança de sua existência assegurada pelo grupo, que se esforce para sobrepujar a satisfação de seu princípio de prazer imediato, ligado às pulsões sexuais ou agressivas.

Se, portanto, nos encontramos em um momento de crise social, em que o grupo não se mostra capaz de garantir nossa existência como antes, a coesão desse tecido e do equilíbrio dessa renúncia individual em nome do coletivo começa a ser questionada. Nas palavras de Freud, “(...) as relações mútuas entre os homens são profundamente influenciadas pela medida de satisfação dos impulsos possibilitada pelos bens existentes” (FREUD, 1927, p. 22).

Vivemos em uma sociedade de classes, em que os bens existentes e, portanto, a possibilidade de satisfação pulsional é desigual aos indivíduos (sem falar na manipulação das pulsões e as transformações de “necessidades” que se alteram de acordo com os padrões sociais existentes). Contudo, momentos de prosperidade podem garantir o mínimo para que a coesão social se mantenha, contanto que a percepção de que “a vida vai melhorar” seja um horizonte constante. Os pais muitas vezes estão dispostos a maiores e mais duras renúncias se vislumbram a perspectiva de que seus filhos tenham uma vida com menos renúncias, projetando na próxima geração uma satisfação da qual abdicam – transferem para seus filhos, como uma projeção narcísica de si mesmos, a realização que almejam. Assim, o Brasil manteve um equilíbrio e uma relativa “paz social” ao longo do último período, e, não à toa, identificando a gradual melhora de vida à atuação de um líder carismático – que, como desenvolve Freud, cumpre papel análogo ao pai na vida psíquica das massas –, com uma expressiva parcela da população vendo a volta de Lula como perspectiva de saída para a crise.

Ao falar das renúncias impostas pela vida em sociedade, Freud diz:

Quanto às limitações que se aplicam apenas a classes determinadas da sociedade, nos deparamos com condições graves e também jamais ignoradas. É de se esperar que essas classes desfavorecidas invejem as vantagens das privilegiadas e façam de tudo para se livrar de seu próprio acréscimo de privações. Quando isso não for possível, uma medida constante de descontentamento se imporá dentro dessa cultura, o que pode levar a rebeliões perigosas. Se, porém, uma cultura não conseguiu ir além do ponto de que a satisfação de certo número de seus membros tenha como pressuposto a opressão de outros, talvez a maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, é compreensível que esses oprimidos desenvolvam uma hostilidade intensa contra a cultura que por meio de seu trabalho eles mesmos possibilitam, mas de cujos bens lhes cabe uma cota muito pequena. (...) Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito um número tão grande de membros e os incita à rebelião não tem perspectivas de se conservar perpetuamente, nem o merece. (FREUD, 1927, p. 29-30)

Assim, podemos concluir que, quanto mais aguçada a crise, e quanto mais os efeitos dela se sintam sobre os ombros dos mais pobres, maior será o nível de esgarçamento social, e menor a disposição à renúncia pulsional. Abre-se um cenário de descontentamento social em que, se não é apresentado nenhum projeto coletivo e social capaz de projetar uma recompensa a uma renúncia que é maior a cada dia, haverá uma predisposição maior à manifestação das pulsões individuais se sobrepondo às renúncias feitas em nome do coletivo.

Crise social no Brasil e a reorganização da repressão no jogo político

É nesse contexto que um projeto político de características muito particulares, e de um discurso muito distinto do que até então se colocava como o “acordo mínimo” social, se tornou massivo no Brasil: o “bolsonarismo”. Para discutí-lo, recorremos a definições que Vladimir Safatle aponta como características do fascismo (SAFATLE, 2018).2

Em primeiro lugar, aponta o “culto à violência”. Diz ele:

trata-se de acreditar que a impotência da vida ordinária e da espoliação, ela vai ser vencida através da força individual, daqueles que, enfim, teriam o direito de sair armados (...) de falar o que quiser sem se preocupar com aquilo que eles chamam de ‘ditadura do politicamente correto’.

Ou seja, frente a uma percepção social de que a renúncia à agressividade vem sendo paga com a agressão – por meio de assaltos, desemprego, corrupção estatal ou outro tipo de violência – o que o líder autoriza é a libertação de minha agressividade individual. Na livre expressão desta eu posso retomar, por minhas próprias forças – mas com a legitimação do Estado – o “meu direito” aviltado. É, na perspectiva civilizacional colocada por Freud, um claro retrocesso, em que o “direito individual” se impõe pela força. Como afirma Safatle, “o fascismo, nesse sentido, oferece uma certa forma de liberdade”; liberdade de não reprimir minha agressividade pulsional. É a “liberação da violência por aqueles que não aguentam mais ser violentados”.

Contudo, a liberação dessa agressão abrange um escopo que é conjugado com o acréscimo da repressão sexual ao “desviante”, que terá também uso político. O discurso e a mobilização afetiva que dão coesão a uma massa, como aponta Freud, exigem sempre a hostilização de um inimigo, cuja existência, ao mesmo tempo em que dá o sentido de unidade ao grupo, é visto como uma ameaça à coesão deste.

Aqui, um discurso repetido à exaustão transformou em “inimigos” certos grupos sociais. Em primeiro lugar, cria-se um inimigo responsável pela situação de miséria: com diversos atores, e vindo desde 2015 sendo elaborado nos distintos níveis de comunicação de massas – televisões e jornais por um lado, e redes sociais por outro – se estabeleceu como o culpado por todos os males o PT, seus governos, seus simpatizantes. A força do discurso deriva não apenas de sua repetição incessante, mas de tomar elementos da realidade – os escândalos de corrupção nas estatais, por exemplo – para se forjar sobre eles uma narrativa muito mais abrangente que sustenta o ódio, peça fundamental para dar contornos e coesão ao grupo, cujo propósito passa a ser se opor aos “petistas” e “esquerdistas”. Aqui, também, é fundamental a identificação de qualquer membro não pertencente ao grupo bolsonarista como pertencente ao “outro grupo”. Isso garante não apenas a coesão do grupo, mas a anulação da validade do discurso do outro. Essa simplificação da consolidação de um “nós” versus um “eles” é fundamental para ver os dois grupos como uma massa homogênea, dando-lhe uma consistência imaginária – no sentido de Lacan – aumentando a identificação do grupo ao qual se pertence e a impenetrabilidade a argumentos que possam interferir em sua coesão. Desta forma, enunciadores tão díspares quanto Folha de S. Paulo, The Economist, Miriam Leitão, Francis Fukuyama e até Marine Le Pen são taxados como “esquerdistas”3.

Pelo lado da repressão sexual, o apoio ao acréscimo da agressividade e a legitimação da violência se baseou em sólidos tabus, atribuindo ao “outro” tudo o que seja hostil às normas morais do grupo: da homossexualidade, transgeneridade e feminismo, à pedofilia e o incesto4. Para tornar mais virulenta a reação, atribui-se ao grupo antagônico o propósito de “doutrinar as crianças” a se enquadrarem nas condutas sexuais desviantes, o que os coloca como ameaçadores dos valores morais – que passam a ser os pilares do mito de uma ordem capaz de trazer novamente a harmonia e coesão social. A violência contra esses grupos é legitimada, o que é visto como a proteção frente à uma “ameaça moral”. O medo das próprias pulsões sexuais recalcadas também é expresso como ódio, e, assim, instrumentalizado politicamente.

Sobre isso, Safatle argumenta que “Essa insensibilidade [em relação à violência com grupos vulneráveis] expressa um desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não sejam alteradas”, ou seja, que a “gramática do visível” mantenha de fora, como não reconhecido, não dito, impossibilitado de existir, todo aquele que foge à norma repressiva ditada por essa moral. Daí que diga inclusive que qualquer identidade dissonante é uma “invenção”, como está implicado no conceito de “ideologia de gênero”; ou que as crianças tornam-se gays ou trans por serem “doutrinadas”, e não por seu desejo.

Trata-se, em primeiro lugar, frente à insegurança do desemprego, da falta de direitos sociais, da instabilidade social, de dar ao medo a resposta de um “retorno a um pai protetor”, sob a forma de um líder pretensamente forte, severo e “incorruptível”; isso responde também ao medo que a mudança trazida pela “erosão dos valores tradicionais” traz. A simbologia criada aí gera uma coesão entre o grupo, e uma ilusão de proteção sob a direção do líder. Garantida a coesão em torno do medo, e da promessa de redenção frente à situação de insegurança, a manipulação é muito mais fácil, e sua crença na agressividade dirigida aos grupos “culpados” pode ser estimulada. É um jogo com a tendência social paranoica que surge da situação de instabilidade, mas que é reforçada e instrumentalizada por esse discurso político no qual a “nossa” identidade ameaçada encontra um inimigo responsável por sua desagregação, e que deve, portanto, ser destruído.

Também se vê como “aceitável” abrir mão da liberdade e da responsabilidade por seu destino diante da tutela do líder, que tomará as decisões. É uma infantilização semelhante à descrita por Freud nas religiões. É pela manipulação dos afetos, muito mais do que por qualquer argumento, que se obtém o efeito político desejado. Assim, também se obtém o efeito de “blindagem” contra qualquer argumentação oposta.

Politicamente, o que garante a adesão de massa a essa ideologia, é a canalização da revolta latente com o atual estado de coisas. O bolsonarismo não poderia ser criado artificialmente, e duas pré-condições histórico-sociais são a base para sua ascensão como “porta-voz” dessa revolta: a crise econômica e a traição dos que antes eram vistos como os representantes políticos dessa massa. É no caldo de cultura do ódio ao PT – ainda que, como apontamos, a figura paterna de Lula se mantenha fortemente preservada em meio a essa erosão – e da desagregação do tecido social, do medo, do desemprego, da violência, que surge essa revolta. E, como aponta Safatle, trata-se da “colonização do desejo anti-institucional pela própria ordem”. A revolta contra as instituições de um regime político no qual a população não se vê representada, paradoxalmente é capitalizada pela crença de que um governo forte, autoritário e supostamente “livre e independente” (como dizia a propaganda) vai restaurar a “ordem” por meio de uma “liderança acima da lei”, que pode expressar livremente aquilo que não pode ser dito. Aquilo, também, que “eu queria dizer mas que é vetado pela Lei”.

Assim, como aponta Safatle, é importante que o líder seja “cômico”, uma “mistura de militar e palhaço de circo”, pois assim suas proposições podem “circular com baixa fricção”, como “brincadeiras” (Freud fala, sobre o chiste, que mensagens que não seriam toleradas pela censura podem circular sob a proteção da “piada”). Mas “o que é real e o que é bravata” fica a critério de cada um: se eu for gay, posso dizer que sua homofobia é “bravata”. Mas só o líder sabe até onde está disposto a concretizar seu discurso – ainda que, é claro, isso dependa de outros poderes reais que estão em jogo.

Desde que a primeira versão deste trabalho foi escrita, ainda antes da eleição de Bolsonaro, diversos eventos corroboraram sua perspectiva. Entre os muitos casos, podemos citar o da empresária Elaine Perez Caparroz, de 55 anos, que foi espancada por quatro horas por Vinícius Batista Serra, de 27 anos, após um encontro que marcaram pela internet. O agressor diz ter tido um “surto” e não se lembrar do ocorrido (LEMOS; BARBON, 2019). O caso é uma expressão que ganhou visibilidade de um processo de aumento da violência misógina cujo alcance ainda está por se ver. Na primeira semana de 2019 foram registrados 21 feminicídios e 11 tentativas (PINA, 2019); até o dia 4 de fevereiro, eram 126 mortes e 67 tentativas registradas (BOND, 2019). Outro exemplo de “liberação” dessas pulsões agressivas legitimadas pelas mudanças sociais é o massacre na escola de Suzano com 10 vítimas fatais até o momento. Após o fato, diversos outros casos de jovens planejando ações semelhantes vieram à tona: em Pontalina (GO) (ADOLESCENTE, 2019), Bom Jesus de Goiás (GO) (CAVALCANTI, 2019), Porto Alegre (RS) (GROSS, 2019), Rio de Janeiro (RJ) (JOVEM, 2019) e Nova Iguaçu (RJ) (MAGALHÃES, 2019) são alguns exemplos. Confome apontou o psicanalista Christian Dunker em entrevista após o atentado em Suzano, há

(...) uma mutação do discurso dominante sobre o que é a violência, e o que é a violência “aceitável”, “compreensível” ou “justificável” dentro da sociedade brasileira. Isso altera a nossa realidade psíquica. E essa mutação promete ser muito nefasta, carregando, inclusive, um sentimento de escalada: a violência vem aumentando, num ritmo acelerado e errático. (SAYURI, 2019)

Sintetizando, no cenário atual a crise das estruturas sociais abre espaço à emergência de novas perspectivas de laço social, e o projeto político de extrema-direita de Bolsonaro vem se mostrando apto a instrumentalizar a revolta social e a agressividade para fortalecer sua figura de líder autoritário (pai) capaz de “apontar uma saída”. Contudo, as já evidentes dissensões em seu bloco político colocam uma dúvida sobre a perspectiva de que seja capaz se manter nesse lugar simbólico.



Referências bibliográficas:

- ADOLESCENTE que planejava atacar escola é apreendido em Goiás. In: O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/adolescente-que-planejava-atacar-escola-apreendido-em-goias-23532739. Acessado em 30/03/2019.

- BOND, L. Número de assassinatos de mulheres no Brasil em 2019 preocupa CIDH. In: Agência Brasil. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-02/numero-de-assassinatos-de-mulheres-no-brasil-em-2019-preocupa-cidh. Acessado em 30/03/2019.


- CAVALCANTI, I. Segundo caso em dois dias: jovem é apreendido suspeito de ameaçar ataque em escola no interior de Goiás. in: O Popular. Disponível em: https://www.opopular.com.br/noticias/cidades/adolescente-%C3%A9-apreendido-ap%C3%B3s-amea%C3%A7ar-ataque-em-escola-em-goi%C3%A1s-1.1755177. Acessado em 30/03/2019.

- EL PAÍS. Joice Hasselmann, WhatsApp e a eleição onde o crime compensa. Artigo: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/28/opinion/1540732323_256151.html?id_externo_rsoc=TW_CC. Acessado em 2/11/18.

- FREUD, S. A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908). In: Obras Completas, volume 8. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

-__________. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911). In: Obras Completas, vol. 10. São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

-__________. Totem e Tabu (1913). In: Obras Completas, volume 11. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

-__________. A história do movimento psicanalítico (1914). In: Obras Completas, vol 14. Imago.

-__________. A repressão (1915). In: Obras Completas, vol. 12. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

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-___________. Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: L&PM Pocket, 2013.

-___________. O futuro de uma ilusão (1927). São Paulo: L&PM Pocket.

-___________. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras Completas, vol. 18. Sâo Paulo: Cia. das Letras, 2010.

- GLASS, B. El papa dice que “el cuerpo humano no es instrumento de placer”. Artigo de La Izquierda Diario: http://laizquierdadiario.com/El-papa-dice-que-el-cuerpo-humano-no-es-instrumento-de-placer. Acessado em 2/11/18.

- GROSS, L. Ameaça de ataque no Campus do Vale da UFRGS é registrada em redes sociais. In: Rádio Guaíba. Disponível em: https://guaiba.com.br/2019/03/20/ameaca-de-ataque-no-campus-do-vale-da-ufrgs-e-registrado-nas-redes-sociais/?fbclid=IwAR0jfZRJCeYwUmYbjY5I3zHgXpHnxNIKxVJTFWVBvwc94AOGZK_hBYhP_0M Acessado em: 30/03/2019.

- JOVEM é apreendido depois de tentar esfaquear alunos no Rio. In: Revista Fórum. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/jovem-e-apreendido-depois-de-tentar-esfaquear-alunos-no-rio/ Acessado em 30/03/2019.

- LEMOS, M; BARBON, J. Mulher fica desfigurada após apanhar de homem que conheceu na web. In: Folha. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/02/mulher-fica-desfigurada-apos-apanhar-de-homem-que-conheceu-na-web.shtml. Acessado em 30/03/2019.

- MAGALHÃES, M. I. Adolescente que planejava ataque à escola é apreendido em Nova Iguaçu. In: O Dia. Disponível em: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/03/5630239-adolescente-que-planejava-ataque-a-escola-e-apreendido-em-nova-iguacu.html. Acessado em 30/03/2019.

- PIMENTEL, M. Abuso sexual na Igreja: a retratação e os ataques ao papa. Artigo de Nexo Jornal: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/09/04/Abuso-sexual-na-Igreja-a-retrata%C3%A7%C3%A3o-e-os-ataques-ao-papa. Acessado em 2/11/18.

- PINA, R. Pelo menos 21 casos de feminicídio ocorreram na primeira semana de 2019. In: Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/08/pelo-menos-21-casos-de-feminicidios-ocorreram-na-primeira-semana-de-2019/. Acessado em 30/03/2019.

- REVISTA FÓRUM. Pesquisa aponta que 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram no “kit gay”. Artigo: https://www.revistaforum.com.br/pesquisa-aponta-que-837-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-no-kit-gay/. Acessado em 2/11/18.

- ROUDINESCO, E.; PLON, M. verbete: recalque. In: Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahat Editor, 1998.

- SAFATLE, V. O que é fascismo, com Vladimir Safatle. In: TV Cult (canal de YouTube) https://www.youtube.com/watch?v=_ypurfdlPmU&feature=youtu.be. Acessado em: 2/11/2018.

- SAYURI, J. “Algo se alterou na violência brasileira”, diz psicanalista. in: Nexo. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/03/14/%E2%80%98Algo-se-alterou-na-viol%C3%AAncia-brasileira%E2%80%99-diz-psicanalista. Acessado em: 30/03/2019.

- TRINDADE, N; MONTEIRO, T. Militares entram na mira de ‘guru’ de Bolsonaro. In: Estadão. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,militares-entram-na-mira-de-guru-de-bolsonaro,70002759116. Acesso 30/03/2019.



1 No mesmo trecho, Freud diz: “A sociedade civilizada [no caso citado, as cúpulas das igrejas] viu-se obrigada a fechar os olhos para muitas transgressões que, segundo suas normas, deveria punir”.

2 Apesar de não considerarmos o governo de Bolsonaro como “fascista” por não atender às condições sociais que engendraram essa forma política particular nas primeiras décadas do século XX, essa é uma discussão que extrapola os limites desse trabalho. Utilizamos a fala de Safatle para debater as características de seu projeto político conforme nos parece pertinente.

3 Expressivamente, após o bolsonarismo ser colocado no governo e, consequentemente, mostrar suas alas e fissuras internas, a primeira reação hostil de um setor bolsonarista contra o outro (Olavo de Carvalho contra Mourão) foi a de tentar identificá-lo a valores atribuídos ao “outro” imaginário, o “inimigo”. Disse o “guru”: “Por que, durante a campanha, o general Mourão jamais mostrou sua verdadeira face de desarmamentista, de adepto do abortismo, de protetor de comunistas, de inimigo visceral do bolsonarismo, de amante da mídia inimiga? Ele fingiu-se de companheiro fiel até chegar ao cargo” (TRINDADE; MONTEIRO, 2019).

4 A imensa influência que isso teve nas eleições pode se vislumbrar por meio de pesquisa que afirma que 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na sua versão sobre o “kit-gay” que circulou nas redes. (REVISTA FÓRUM, 2018). Outra pesquisa aponta esse número como 36% do eleitorado total, enquanto 15% disseram acreditar que Haddad defendeu o incesto em um livro de sua autoria. (EL PAIS, 2018).



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