sábado, 28 de junho de 2014

Repetir eterno de uma mente sem lembranças



Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud inicia chamando a atenção para o fato de que, ao longo de sua história até o momento da escrita desse texto – 1914 – a psicanálise já havia passado por mudanças profundas, tanto em sua compreensão da formação e constituição do psiquismo e de suas patologias, como, consequentemente, da técnica terapêutica embasada por tais compreensões. Desde sua origem a partir das experiências com a hipnose e a meta de fazer com que o paciente recordasse o momento de origem do sintoma e ab-reagisse, passando pela técnica da sugestão e interpretação por parte do médico, até, enfim, chegar à concepção de que não era a meta do médico interpretar e comunicar ao paciente as suas memórias reprimidas ou mesmo focar-se no momento de origem do sintoma, mas sim de utilizar a interpretação para auxiliar o paciente a reconhecer suas resistências para que ele conseguisse superá-las.
            Em todo o caso, sempre esteve em primeiro plano a questão da repressão e da recordação – ainda que o próprio conceito de repressão (recalque) tal como o conhecemos tenha demorado anos para surgir nesse processo. A teoria do trauma, na qual um evento desencadeador dos sintomas seria reprimido formando os sintomas, dá aos poucos lugar para uma teoria mais elaborada, mas que leva sempre em consideração o jogo de forças que se estabelece entre o consciente e o inconsciente – na primeira tópica – ou entre o Id, Ego e Superego – na segunda tópica – ocupando a repressão um lugar destacado na conceituação teórica e na preocupação terapêutica do analista. As resistências, tendo surgido em primeiro lugar como processos necessários para a sobrevivência psíquica do analisando, em algum momento tornam-se obstáculos causadores de sintomas psíquicos, e por meio do processo analítico devem ser reveladas para poderem ser superadas. Assim, trazer à tona – pelo menos em parte – do que se oculta no inconsciente é uma parte essencial do processo terapêutico.
Há muito a aprendermos no emblemático caso de Anna O., de Breuer, em que todas as recomendações que seriam feitas por Freud ocorreram ao inverso: a transferência deu lugar a um caso amoroso entre paciente e analista, e, em seguida, o médico utilizou da sugestão hipnótica para tentar reprimir os sentimentos da sua paciente, dessa forma, certamente fortalecendo enormemente as resistências de sua paciente. Seu objetivo era erradicar a vivência desse amor que havia causado desconforto tanto a ele e sua esposa, quanto à sua paciente.
No filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, escrito pelo brilhante roteirista Charlie Kaufman, vemos um processo semelhante. O processo desenvolvido pelo Dr. Howard Mierzwiak procura, por meios tecnológicos, erradicar – ou seja, reprimir, como fica claro no decorrer do filme – as lembranças que causem mal estar, tristeza, angustia ou qualquer sentimento desprazeiroso nos pacientes. Nas palavras do médico, quando a pessoa “se sente infeliz e quer seguir adiante, nós fornecemos essa possibilidade”. Freud afirma que, desde a hipnose, “O objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado, sem dúvida. Em termos descritivos: preenchimento das lacunas da recordação; em termos dinâmicos: superação das resistências da repressão.” A empresa de Mierzwiak, sob o sugestivo nome de “Lacuna”, procura fazer justamente o contrário: em termos descritivos: criar lacunas de recordação; em termos dinâmicos: instaurar resistências de repressão.
Tal técnica, que procura criar uma “solução milagrosa” que evitaria os inevitáveis desconfortos que todos passamos ao lidar com as situações difíceis da vida, não pode deixar de lembrar as promessas da indústria farmacêutica moderna, que, em particular em seus momentos de grande furor de marketing, promete curas “milagrosas” para os problemas da vida, tal como foi com o boom do Prozac nos anos noventa. Contudo, como Freud já mostrava há um século, não existem curas milagrosas para as aflições humanas. E, como ele aponta em seu texto, quando o paciente é incapaz de recordar, ou seja, de superar as resistências de repressão, ele atua, repete comportamentos, reproduzindo na sua vida ou na sessão analítica aquilo que é incapaz de recordar ou de traduzir em palavras. A ideia da técnica analítica é que, por meio das palavras, do resgate simbólico e, assim, da superação do reprimido, o analisando deixe de ser vítima da eterna repetição, tornando-se progressivamente mais consciente dos processos psíquicos que se dão em seu inconsciente e, desta forma, mais sujeito de suas próprias ações e sentimentos.
Como aponta Freud, “Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de repetição, e que a repetição é transferência do passado esquecido, [transferência] não só para o médico, mas para todos os âmbitos da situação presente. Devemos estar preparados, portanto, para o fato de que o analisando se entrega à compulsão de repetir, que então substitui o impulso à recordação, não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todos os demais relacionamentos e atividades contemporâneas de sua vida, por exemplo quando, no decorrer do tratamento, escolhe um objeto amoroso, toma para si uma tarefa, começa um empreendimento. Quanto maior for a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir).”[1]
É exatamente isso que se demonstra em “Brilho eterno...”. Mary Svevo, secretária da Lacuna, se apaixona pelo seu patrão, Dr. Merzwiak. O sentimento amoroso de Svevo apresenta um componente fortíssimo de idealização, de idolatria pelo médico, diante de quem sente-se tola, e a quem reserva todas as qualidades do mundo, querendo a todo momento impressionar: a qualidade da “transferência” se evidencia de forma quase caricata, ainda que não exista uma relação de analista/analisando entre ambos. Pois, como observa Freud, o amor de transferência pelo analista não segue padrões distintos de todas as paixões da vida cotidiana: “(...) é verdade que essa paixão consiste de novas edições de velhos traços e repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de toda paixão. Não existe paixão que não repita modelos infantis. É justamente o condicionamento infantil que lhe confere o caráter compulsivo que lembra o patológico.” [2]
O médico, diante de sua deslumbrada e belíssima secretária (interpretada por Kirsten Dunst), se envolve em um caso extra-conjugal. Repetindo, como uma paródia, o caso de Breuer, o caso entre Mary e Howard desperta o ciúme de sua esposa. Utilizando de sua influência, para se livrar desse enorme problema, tal qual o Dr. Breuer quis reprimir os sentimentos de Anna O., o Dr. Merzwiak estabelece um “acordo” com Mary de que “o melhor para todos” seria submetê-la ao procedimento de “apagar” seu caso amoroso, removendo-o da memória de Mary, e todos seguiriam suas vidas como antes.



No entanto, na ficção como na vida, as lições de Freud se revelam verdadeiras: Mary, impedida de recordar, com a repressão artificial criada pelo procedimento bloqueando a vivência de seu romance com Howard, irá atuar, repetir. Ela apaixona-se novamente pelo médico, condenada a, impelida pelo seu inconsciente, repetir infindavelmente o padrão de sua paixão. Finalmente, Howard revela a Mary o que ocorrera anteriormente, o que desperta sua indignação. Talvez, diante de sua tragédia de repetir aquilo que artificialmente fora reprimido, Mary tenha finalmente se dado conta da falácia da “cura mágica” para os sofrimentos inventada pelo Dr. Merzwiak. E, assim, decide enviar a todos os pacientes seus históricos, dizendo a cada um o que foi reprimido de suas recordações.
Assim, os pacientes de Dr. Merzwiak se deparam, querendo ou não, com o fato de que nossos comportamentos são condicionados por nossa história, por nossa vivência, tenhamos ou não consciência disso. E que não há “máquina mágica” capaz de impedir que tenhamos que lidar com os fantasmas de nosso passado para que possamos preparar, de forma consciente, nosso porvir. Se é verdade que nunca seremos capaz de conhecer tudo aquilo que se oculta em nosso inconsciente e sermos completamente conscientes de nossos processos psíquicos, é um fato também que procurar reprimir aquilo que não nos agrada não será uma solução para a felicidade. Como diz Mary em determinado momento do filme: os bebês são tão puros, tão livres e tão limpos; e os adultos são essa confusão de tristeza e fobias. Pode ser. Mas não há “novo começo” possível: viver deixa marcas e cria nosso psiquismo tal qual ele é; tudo o que podemos fazer é tentar desvendar os mecanismos de repressão que criamos para tentar ser mais conscientes daquilo que fazemos.


[1] FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. P. 195 In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[2] FREUD, S. Observações sobre o amor de transferência. p. 223. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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